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LITERATURA PARA TODOS OS PALADARES



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DIÁRIO DE UM P.M.D



EDSON COSTA DUARTE


DIÁRIO DE UM P.M.D.
ou
DIÁRIO DE UM DIAGNÓSTICO




HOSPITAL PSIQUIÁTRICO TIBIRIÇÁ
(De 11 de fevereiro a 7 de março de 2000)

2000



O mundo é o abismo da alma.

Antonin Artaud




Eu é um outro.

Rimbaud



P R I M E I R A P A R T E


O texto que segue é um diário que fiz durante um mês de internamento no Hospital Psiquiátrico Tibiriçá, que se localiza em Joaquim Egídio, cidadezinha próxima a Campinas, em São Paulo. O diário começa no dia 11, 4 dias após eu ser internado, um dia depois de meu aniversário. As condições do hospital e demais aspectos que não tratei neste diário ficam por conta da imaginação do leitor. Quando eu escrevia, o que prevaleceu foram minhas reações diante de tudo o que via. Meus sentimentos estão em primeiro lugar, depois vem o riso, meio angustiado, de se saber preso “entre quatro paredes” (a frase é o título de uma peça de teatro de Sartre), com seres que são tão importantes quanto eu, e tão diferentes de mim. Na primeira parte, transcrevi, também, anotações feitas por outros internos, a quem agradeço essa soma de suas vozes à minha. Por fim, é preciso anotar uma dívida com Adriane Pianowski, amiga funda e delicada, que leu esse meu texto e sugeriu-me o título Diário de um diagnósti-co. Explicações demasiadas nunca são boas. Vamos ao texto.

11/2/2000
13:45 minutos
Hoje acordei às 5 da madrugada. Os enfermeiros de “plantão” ficaram putos da vida comigo, acho que queriam dormir um pouco. Um deles falou grosso comigo, mas a essa altura do campeonato, além de mim, havia uns 3 ou 4 internos acordados. Re-sumo da ópera: hoje o dia começou mais cedo.
Cansei de escrever.
Hoje estou completamente grogue desde que acordei. Deve ser por causa do medicamento: aldol com fenergam. Por enquanto BASTA. Depois continuo.



21:50 minutos
O que mais reina aqui é uma certa APATIA gerada pela alta dosagem de remé-dios que nos dão. A voz dos enfermeiros até se altera quando eles gritam, maquinal-mente, dizendo: “Remédio, é a hora da medicação”, porque eles sabem que depois de mais ou menos 1 hora, estarão livres de nós, que quase todos nós estaremos dormin-do.
Entra no quarto R, o sereio, um de meus companheiros de quarto. Ele vai até a janela e fala: “Louva-deus Iemanjá”, repetindo automaticamente umas 5 vezes. Per-gunto a ele o porquê de agradecer. Ele me diz que agradece a Iemanjá por não ser só peito, por ser inteiro um sereio.
O gatinho preto mia, desesperado. Está chovendo e acho que ele não pode sair de seu esconderijo, por isso mia. R evoca novamente Iemanjá: “Louva-deus Ie-manjá, todos os sereios. Saúde, meu Deus, obrigado, meu Deus.” E fica rindo sozi-nho.
Pergunto o porquê do riso, ele não me responde, só continua rindo. Depois vai dormir. Dorme ou finge que está dormindo, não sei. A chuva é insistente e forte. R continua dormindo, mesmo com a luz acesa.
R ora: “Louva-deus, todos os sereios. Saúde, meu Deus, obrigado, meu Deus.” Repete o sereio R. Ele acredita mesmo que é um sereio, mas depois falarei sobre isso. R continua rindo desbragadamente agora, não pára de rir um segundo. “Salve rainha. Salve todos os sereios (fala rapidamente o nome dos sereios). Todos os que eu falei agora. Saúde, meu Deus. Obrigado, meu Deus”, ele repete. E continua rindo.
Pergunto o porquê de ele fazer isso. Ele fica mudo. “Por que você faz isso?” Ele muda de assunto e responde outra coisa que nada tem a ver com o assunto.

15/2/2000
6:30 minutos
Sou acordado mais ou menos às 6 horas. Estou morrendo de sono ainda. Escovo meus dentes. “Empresto” um cigarro etc e tal. Todo dia é sempre igual. O pa-ciente do quarto 102, leito 2, continua igual. Mal como sempre (agora acabei fazendo um monte de rimas, um eco, em al, ficou horrível). Falo com o enfermeiro. Ele me diz que o médico sabe o que faz.
Tudo como sempre. Penso nos cachorrinhos da H, devem ser ainda uns 100. Como eles estarão? Penso nos meus pais e amigos. Rezo por todos. Penso na M e na sua filhinha V. Rezo por elas também. No Z, penso só depois. A vida aqui é esse eterno pensar nas pessoas e nas coisas. Como estará a minha conta de banco? Será que eles (meus parentes) vão resolver o saldo negativo? Paro um pouco de escrever.

6:40 minutos
No meu quarto agora estão: R, o sereio; A, o negro gato e B, ainda sem apeli-do. O meu apelido, para alguns é Clô, de Clodovil. Ainda bem que alguns ainda man-têm o bom humor por aqui. Agora são 15 para as 7. Vou parar um pouquinho. Agora 6:55 minutos. Estou sentado à mesa esperando para tomar café. Os internos não pa-ram de falar. Tossem, gritam às vezes, falam coisas desbaratinadas. Alguns são bem loucos mesmo. Uma parcela deles, creio que uns 40% são “normais”.
Gostaria de sair logo daqui para escrever mais tranqüilamente no meu compu-tador. Meus dedos começam a doer rápido. E minha letra se altera. Meu Deus, repe-tindo Rimbaud, em “A virgem louca”: “Que vida! Que vida! Que vida!” Estou exausto desse lugar. Parei.

6:58 minutos
Tento arrumar, desesperadamente, um CIGARRO, mas não consigo. Daí me lembro de todos os cigarros que dei ontem e fico puto. Fico com raiva de eu continuar a ser idiota e fazer todos os dias a mesma coisa: dou todos os meus cigarros.
Nessa hora, eu queria mesmo é ser um dos donos da Souza Cruz etc, para ter um caminhão de cigarros a hora que quisesse. Quero tomar café da manhã (aqui eles nunca servem café preto), ou melhor dizendo, “leite da manhã”, como é mais apropri-ado dizer nesse caso. Mas nada de bebida ou comida. Estou com fome.

15/2/2000
20 horas
Fiquei quase todo o dia dormindo. Efeito dos medicamentos, supostamente dados a mim para que eu melhore, fique “normal” como todos os outros seres huma-nos. Dormir o dia inteiro é estar melhor? Só é bom para os auxiliares de enfermagem e enfermeiros!!! Agora, que já perdi o dia todo, para mim, tanto faz dormir ou não dormir mais um pouco.
O último medicamento será dado mais ou menos às 21:30 minutos. Tudo tem o seu preço. O da “minha loucura” ou “surto psicótico” é esse: dormir, “descansar” como os enfermeiros falam, e deixar todos na santa paz.
Hoje, gostaria de ter lido os jornais, livros que amo, gostaria de ter escrito uns poemas. Mas como isso é possível, se eu durmo o tempo todo? Merda, merda, merda de vida que só me faz dormir.

21 horas - perto da hora do último remédio do dia
B diz que quer uma menina bem difícil, “uma mina linda, mas de favela, com todo respeito”. Ele conta uma transa que teve com uma menininha supergostosa, se-gundo ele, bem novinha e fogosa. Ele só pensa em sexo.
O negro gato não se conforma porque L, a enfermeira, não quis lhe dar café e papel para ele fazer um cigarro com fumo picadão, vagabunda, essa moça, ele diz numa ira momentânea. Acho mesmo é que ele gosta muito de L. Ele diz que não vai mais falar com ela. “Ela dava o maior boi, dava a maior liberdade para mim.” Hoje ela tesourou ele. Ele não se conforma. R, o sereio, não quer nada, como sempre. Ele está numa puta depressão e nem sabe disso, este dorme, literalmente, o dia inteiro. Ele só quer saber que dia é hoje. Ele quer só um cigarro para fumar. E o negro gato diz que agora só tem um último cigarro e não vai dar.

21:10 minutos - Hora de dormir. Remédios.

16/2/2000
6:40 minutos
É todo dia assim. Eles chamam a gente às 6 horas, pra gente ficar até às 7:30 minutos fazendo nada, matando o tempo. Se bem que isso é a única coisa que a gen-te faz aqui. Hoje J, um interno bem loucão mesmo, já tirou toda a roupa. Ficou pela-dão.
Alguém, não se sabe como, conseguiu abrir a porta de onde ficam os chuvei-ros, e várias pessoas tomaram banho fora do horário. Foi um auê. Aqui também exis-tem os subversivos. Os enfermeiros e enfermeiras ficaram putos. De nada adiantou. Tudo já estava feito. Façam seus jogos “senhores”.

16/2/2000
Perto das 9:30 minutos.
Meu pai veio, hoje de manhã, para conversar com a médica psiquiatra. Nem conversei com ele. Pelo jeito, vou ficar aqui muito mais tempo do que eu esperava.
RESIGNAÇÃO. HUMILDADE. Eu me repito todos os dias. Talvez eu vá depois para um mosteiro. Beneditino, quem sabe. Não tenho mais tesão. Nem de me mas-turbar. Hoje tenho menos sono do que nos dias anteriores. Talvez estejam diminuindo a “potência” dos remédios. Quem saberá? Resignação, eu me repito. O jogo parece que é fazer do jeito que mandam e ficar bem caladinho. Boca de siri.

10 horas da manhã, segundo a enfermeira AL.
Acabo de cantar duas músicas do Chico, o César, que sempre lembro com versos incompletos e alterados por mim: “Beladerô”: “Os olhos da moça triste rodando no gravador... e a cigana analfabeta lendo a mão de Paulo Freire...”; e “Ah, caicó ar-caico, no meu peito catolaico tudo é mistério e fé”.
Obviamente comecei a chorar. Essas duas músicas me emocionam como ou-tras que ouvi. Assim como alguns livros também. A música que mais me emociona é “Ano zero” do disco “Solo” de Egberto Gismonti. Pura emoção. Então eu chorei lem-brando da música do Chico, me emocionei e chorei. Chorei por tudo o que se pode chorar. Cansei de escrever.

13:30 minutos
M fez um pequeno desenho e escreveu alguma coisa no meu caderno, parece que um pequeno poema. Pergunto a ele se ficou triste quando escreveu o último ver-so do poema que é muito triste. Ele me responde que não, sorrindo. Parece que já gastou toda sua emoção. Ele vai embora com uma tristeza que nem ele mesmo sabe que deve ter ou tem dentro de si.
O que escrever agora?
Tudo parece vão. Quantos dias mais ficarei aqui? Este lugar é uma grande merda. Não tem nada, absolutamente nada para a gente fazer aqui. Os enfermeiros querem que a gente durma o tempo todo.
Quando acordei era ainda 12:30 minutos e fui perguntar as horas, demoraram um tempão para responder. Tive, então, que esmurrar a janelinha por onde a gente se comunica. Lá vem o enfermeiro e diz: “Agora são 12:30 minutos, você não precisa esmurrar a janelinha. Agora é hora do repouso”.
Pode, amigas!!! Hora do repouso significa que a gente tem que ficar dormindo o dia todo para não incomodar ninguém. Pode? Para que é que eles são pagos? Es-tou com raiva, ira, até agora!
Minha vontade foi a de esmurrar a cara do enfermeiro que me disse isso. Não fiz. Se eu tivesse feito isso, se eu não controlasse a minha ira, pior para mim, é claro. Daí teria que ficar mais incontáveis dias aqui. Tenho dito. Benedito. Será o Benedito?

16/2/2000
19 horas
A morte pode ser também o absoluto desprezo de tudo. “Morremos sempre na véspera”, eu escrevi um dia. Hoje parece que morri umas três vezes. E renasci, feito fênix, da tristeza, da dor e da angústia. Queria estar mais além, onde se fazem os so-nhos. Igual a um quadro de Chagall, como se fazem os doces, o algodão doce, para ser mais preciso. Ou as nuvens, quem saberá? Quantas vezes se morre num dia? Não é só no sono que se morre. Morre-se também no desafeto, no desaforo de conti-nuar vivo. Quanto se morre no período de um dia?

19:30 minutos - depois do banho
Meus pais vieram me visitar, junto tios meus, É e J. Nem conversei quase. Co-loco toda a culpa de eu estar aqui neles. Não deveria fazer isso.
Agora penso no C que deve estar em São Paulo fazendo tudo igual. Ele sem-pre tem trabalho sobrando para o dia seguinte. Gosto muito dele ainda. Acho que tal-vez ele seja a única pessoa que amei até agora na minha vida. “C, você é muito pe-dante etc.” Essas falas minhas nunca dão certo. Acho que tudo isso serviu para que eu fizesse o livro de poesia “Lírica impura IX”, só isso. Nem sei se ele pensa em mim mais. Isso me dá uma pequena ponta de angústia, se é assim que se pode chamar isso que insiste em alfinetar nosso peito, quando estamos na paixão ou no amor não correspondido.
Estou cansado. Aliás, exausto. Paro um pouquito agora.

19:50 minutos
Voltei: como se volta de longas férias forçadas no deserto. No NADA. Voltei para dizer que não há cão que não lata, nem gato que não mie. Voltei como se volta de uma longa viagem num deserto de gelo. Também compramos ouro e latas. Almas por enquanto não. Almas precisamos para o além daqui. Para a morte do NADA.

20 horas
Agora já é noite. Daqui a pouco teremos chá. Tudo exatamente igual todo dia. Nem tenho mais nada pra contar, mas continuo. Amanhã é 5ª feira, espero que algu-ma coisa de diferente aconteça. Gostaria do comer um bolo de chocolate e sorvete também.

20:30 minutos
Acabamos de tomar o chá, que nunca eu tomo, diga-se de passagem. O chá significa comer dessas bolachas mais vagabundas, ou meio pedaço de pão sem na-da, e um chá-água bossa mate-leão, também, é claro, dos mais vagabundos...

17/2/2000 - 5ª feira
13 horas
Hoje liguei para casa às 9:30 minutos. Me desculpei com meu pai porque fui grosso com ele e com minha mãe ontem. Hoje fui o bom menino até agora.
Levantei, tomei remédios, café da manhã, almoço (sempre às 11 horas) etc. Daqui a pouco vem o Terapeuta Ocupacional (TO), que se chama Él, às 14 horas. Às 14:30 minutos é a hora da merenda, do lanche, do café da tarde (que NUNCA tem café propriamente dito).
É bom descrever essas coisas. Tudo banal como penso que é a vida. “Gosta-ria de ser calmo, frívolo, coeso...”, foi mais ou menos assim que a H escreveu no seu livro Cartas de um sedutor.
Gostaria de poder me amarrar ao Tempo, não envelhecer, e nem ter que co-mer, cagar, mijar e beber. Coisas banais, mas que me mostram minha dimensão hu-mana, me mostram o quanto sou carne e apodrecimento. Paro por aqui. O resto po-deria ficar fundo demais, grave demais.
Enquanto isso (bossa o cineasta Grifth) a mocinha continua sendo salva dos bandidos. E os loucos? Os loucos continuam com a mesma voz e loucura. Finale. Não grande.

13:50 minutos
O texto que se segue foi escrito por M, um interno do Hospital. É claro que tem a primeira estrofe chupada do Casimiro de Abreu. As outras acho que não são de ne-nhum outro poeta.

“Que saudade tenho
da aurora da minha vida,
da minha infância querida
que os tempos não trazem mais.

O sorriso é a estrela do horizonte da alma.
Eu bem que queria a noite e um dia
sempre contigo poder passar.

Eu sempre estarei aqui
e sempre contigo quando precisar.

O horizonte e o céu se parecem muito,
quanto o sofrimento da minha alma.”




17/2/2000
Texto escrito pelo interno B. Procurei, o máximo que pude, manter a mesma fluência do texto original, corrigindo apenas os erros de português mais graves, que eventualmente poderiam atrapalhar uma leitura mais fluente do texto original.
Procurei manter o estilo de diálogo do texto, ora conversando com o leitor, ora consigo mesmo, ora com Deus e assim por diante. Os parênteses, com exceção de um, são todos de B.

“SOL NASCENTE

Eu B fiquei aqui e nem quero voltar mais, cumpria minha promessa para minha mãe que me trataria, que ficaria 15 dias interno, pois fiquei.
Bem, legal, tomei os remédios, tive uma convulsão e até agora não tive outra. Estou melhor. Desmaiei na cozinha, tive um branco e acabei caindo. Foi na hora que levantei da cama muito rápido. Pensando na (...) e no bem estar, acabei me exaltan-do. Bem!!! Tudo bem. Minha alta é no dia dezoito, amanhã. Quero dizer fui, tchau vas-co. Fui nessa.
Conheci uns amigos que me interessaram aqui na clínica hospitalar, foram legais comigo: Edson, o negro gato e umas pessoas. Legal. Ah, já ia me esquecendo do índio, uma pessoa super interessante. Já falei das pessoas que me impressiona-ram
Ah! Agora vou escrever o que não gostei da triagem. Os enfermeiros tudo com cara de quem comeu e não gostou. É, eu penso nas mortes que acontecem nos quar-tos ou no soro que põem em maldades. Nos doentes que me dá dó de ver.
Bem, a hora da visita até que é boa. Minha mãe não deixa de vir até aqui me visitar, minha tia, D (irmão de B), a mãe do meu filho, meu filhinho. Legal.
Um tempinho mais e tô espirrando. Amanhã dia 18 de fevereiro. Fiquei aqui desde o dia dezessete. Dá azia. Tô na linha.
Aqui tem mano de todo tipo de lugar. Por exemplo, dos municípios: Cardoso, Bebedouro, Cearense, Campineiro, Campineiro (na raça Paranaense), Paraná, Perrei-ra Barreto, Paulínia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Surubim Pernambuco (tem bastan-te).
Bem, estes são os lugares dos internos que vêm de todos os lugares, bem, eu mesmo nasci em Campinas.
Lugar horripilante (este hospício), tem gente que pula muro, tem mano que come com as mãos, aqui é ruim, espero que entendam que não sou louco e nem pi-rado, sou bem esperto e bem malandro. Aí está faltando mais alguma coisa, já sei, a comida que é boa e ruim, a mistura é boa, o arroz e o feijão não preciso nem dizer, mas ai oh, o zóio (ovo?) do digão, zóio de capeta. Cruz credo.
Não quero nem saber se a vida lá fora tá ruim ou tá boa, só sei que vou conti-nuar a minha vida seja qual é que deus me deu. Tenho fé. E nada de me jogar na pedreira ou me cortar com facão, certo?
Se eu vou morrer, então que a morte me leve. Não, isso de eu ir para a morte. É isso que está me perturbando. Deus, eu queria uma resposta disso, dizem que exis-te a maçã verde, sei lá, eu tenho a minha vida, seja boa ou ruim, estou bem. Tenho fé, mas Deus, porque tenho essas idéias de me jogar ou me matar, hein?
Ô Deus, você acha que aqui não está bom, você acha que devo me jogar de cima da pedreira, para o bem-estar da comunidade desta Terra. Sim, acredito no Se-nhor, por isso estou passando, vendo as coisas de perto, sofrendo, espero que al-guém esteja me acompanhando. Me diga por que deveria me jogar lá de cima se aqui o mundo é maravilha de viver?
É esse mesmo, eu, BAP, penso em uma explicação para isso. Já pensei que me jogando provaria para a malandragem que eu seria corajoso. Não tó aqui nesta vida porque tenho uma missão para cumprir? Prometo ao Senhor que mudarei o meu jeito de ser e só vou usar a maconha, nada de tóxico e injetável, certo?
Deus, eu tive um lugar que poderia deixar bonito, tive um quarto, minhas cria-ções, estava indo na linha. Só que vinham as minhas perturbações, que não teria jeito de viver sem me entregar ao Diabo. Para mim é uma tentação isso. Eu vivo, é lógico, e as pessoas lá fora vivem dizendo: ééé B é B. E aí então eu misturo essas idéias de me matar para honrar a família, sei lá.
Quero ficar bem longe de amigos que não prestam, não vou dizer também que vou virar santo daqui em diante, estou sendo claro?! Uma macoinha de vez em quan-do não me faz mal, são as críticas de fora que são pereturbadoras. Todos irão morrer um dia, eu você, nós todos temos uma vida independente, cada um é cada um.
Não posso ficar no Berna (São Bernardo), senão é arriscado eu levar uma bala na cabeça. Ou sei lá aqui! Vou para Santos trabalhar com uma caixa de isopor e al-gumas latinhas de ceva (cerveja).
Tenho um filho pequeno, uma mãe que me ama, dois irmãos, D foi o apelido que eu dei para o mais novo deles. E o meu irmão do meio que é o M. Tenho uma família interessante.
Agora, meu Deus, se eu estiver atrapalhando eles de verdade que não, estou estava na linha até que dormindo sossegado em casa, no meu quarto, de madrugada o R atirou uma pedra na minha cabeça e me arrastou para fora e me bateu, deu so-cos e pontapés, rodo etc. (...)
Quero ir embora daqui de Campinas, ficar fora algum tempo, arranjar um servi-ço e trazer dinheiro para a família que curto. Mas parece, Senhor, que não querem que isso aconteça. Por quê?! Por quê??!!
Eu nasci para quê? Para me jogar lá de cima, do alto, você acha que é a solu-ção? Fazer isso para o bem-estar da comunidade? Sou uma pessoa muito boa. Eu nasci não para me julgarem o que devo fazer, e o que acham que devem fazer, nin-guém manda na minha vida. Se eu vou morrer, então a morte me busca. Por Deus, é claro. Não me entregando para Deus.
Deus deu o dom da vida, a vida é bela. Me dê uma explicação do porquê você acha que eu deveria me matar, se eu gosto daqui, desse meu mundo. Não acho certo as pessoas darem as idéias do que eu deveria fazer, não acha?
Bem, eu estou de alta, amanhã eu sairei e voltarei para casa. Mas que casa? E que vida? Minha mãe mora numa casa que nem dela é, meus irmãos moram com meus avós, e eu vivo andarilho. Deus, me dê uma resposta disso, o que você acha que eu devo fazer. Minha idéia é ir para a praia trabalhar de fim de semana, ficar lá, se você acha que é uma boa, então certo.
E você (a morte) eu quero que se foda, porque quem está pensando sou eu, não tenho culpa de estar aqui nesta Terra. Estou vivo, vou continuar a minha vida bem ou mal, se Deus Bom permitir. Até agora ouço vozes que é esse é esse.
O meu amigo Edson disse uma boa verdade, e eu também achei boa. Sabe qual é: acabar o mundo e começar tudo de novo. E vem da minha consciência o que eu acho. Estou bem. Estou bem diante de agora. Levarei a sério a minha vida.
Como seria a vida sem pecados, seria ótimo, nem passaria isso nas idéias. Nossa se eu tivesse que perder a vida para outro. Então, cadê esse Deus? Certo.”

Segue um texto, escrito em meu diário por WA, o negro gato.

17/2/2000
“Eu e LL, por Negro Gato.
Sinto muito bem a seu lado. Seu rosto lindo com olhos negros me fazem es-quecer da minha dor, que afinal é enorme. Ela brinca comigo, diz várias coisas e al-gumas vezes você me incentiva como se você fosse minha namorada LL. Eu gosto de você, quando te vejo me sinto forte, esqueço a internação. Quando discutimos me sinto fraco e logo me reaproximo de você inventando algo novo para falar, não te amo e nem quero nada sério, mas sem você fica difícil ficar assim. Eu, A.

16:25 minutos - Frio.
Estou rindo e feliz, recebi meus óculos de 1 grau, realizei meu sonho. Estou como estudante, um rosto mais sério. Modificar a aparência. É preciso? LL me sorriu e brincou comigo e o Edson Duarte me disse que eu gosto dela. Ela só sorriu mas não renegou. Tomei coca-cola, café e alguns chocolates. No mais estou feliz, amanhã mi-nha mãe vem, mais canseira e humilhação para mim. Agora vou jantar. 17:00 horas e alguns minutos. Já já eu volto.”

17/2/2000
18:50 minutos
Novamente igual. R, o sereio, riu bastante consigo mesmo. Ele me disse que estava pensando no seu passado. Em músicas “house”, não sei como escreve, de boates.
Ele diz que depois do carnaval, quando sair aqui do Tibiriçá, vai ganhar R$ 1.000 reais. Para ele curtir a vida. Ele não trabalha, depende dos pais. Vai fazer suple-tivo numa escola que se chama “Marina”. Disse que pensou em pintar o cabelo de ruivo, mas vai deixá-lo preto mesmo, que é a cor natural do cabelo dele.
Disse também que vai comprar um carpete verde para o quarto dele, um som e uma bicicleta. A bicicleta é para ele ficar lindo fazendo exercício. Tudo isso só depois do carnaval. Agora, a mesma coisa de sempre. Dormir, comer, tomar banho. Todos os dias são iguais aqui. Tudo igual.
Depois do carnaval, onde estarei? Na mesma vida igual lá de fora? Espero que não. Espero que alguns projetos meus tenham dado certo. Que ao menos eu já esteja morando em São Paulo. E trabalhando com o ZB e a LF. Espero...

18/2/2000
8 da manhã - Sol e frio.
Daqui a pouco vou medir a pressão com C. Essa coisa da pressão demora horas. A gente faz uma fila aqui fora e fica esperando. Por que será que é preciso me-dir pressão todo dia? O rádio sintonizado na rádio Laser FM. Só música “caipira”, me-lhor dizendo, “sertaneja”. Agüento bem, consigo até rir, brincar. Antes era um horror. Agora, parece que o riso é a única saída.
De repente penso em CC. O que ele estará fazendo numa 6ª feira, 18 de feve-reiro de 2000, às 8 e pouco da manhã. Recordar, etimologicamente é trazer de novo para o coração (em latim, cors-corde).
O que eu quero mesmo agora é um cigarro e um café. Mas café só é possível comprar quando abre a cantina. É simples, mas preciso esperar mais uns vinte minu-tos até o enfermeiro C. acabar de medir a pressão de todo mundo.

10:20 minutos
Tudo aqui é demorado, moroso, lento mesmo. Não há adjetivo que explique. Demorei das 8 às 10:20 horas... Cansei de escrever.

18:20 minutos
Hoje nada de novo. A mesma mesmice de todos os dias. Almoço às 11 horas. Depois dormi por causa do medicamento e acordei perto das 14 horas. Às 14:10 mi-nutos lanche e remédio. Lanche significa metade de um pão francês sem margarina e chá mate leão, que não tomo, fico só no pãozinho mesmo.
Depois, às 14:30 minutos saí para telefonar e ver os meus pais, que só chega-ram as 15 horas. Hoje eles vieram de ônibus, pois ninguém com carro pôde trazê-los até aqui. Depois da visita (que durou até 16 horas) estive quase o tempo todo entre o quarto e o corredor.
Tentei desesperadamente dormir, mas não consegui. Não agüento mais papo de louco, é tudo sempre a mesma coisa, como um disco/cd que estivesse repetindo ad infinitum uma mesma música. É um saco. Somente consigo conversar com A, o negro gato, e com mais 2 ou 3 internos por mais tempo. Os outros, mesmo quando são “normais”, não me interessam. Paro para ir ao banheiro.

18:40 minutos
A perdeu a boquinha de ouro, a AD. Ele diz que muita estória ainda vai rolar. Que nada é impossível. Mas eu acho mesmo que ele tá afim é da LL (top secret).
Tudo sempre na mesma. Aqui todos os dias são iguais, ou mais iguais do que são lá fora. Eu repito mesmo, propositadamente, para ver se o leitor vai compreender um pouco, quando ler isso. Aqui tudo é igual, a mesma coisa todo dia.
Parece com qualquer texto de Samuel Beckett, escritor a quem admiro e amo muito, tudo igual. A mesma coisa. La même chose toutes les jours sont. A mesma coisa todos os dias são. Isso é a tradução da frase. A mesma coisa.

Texto anônimo, que alguém escreveu no meu caderninho sem eu ver.

“Estávamos espalhados pela nossa casa, quando de repente, falávamos uns com os outros, quase ao mesmo tempo, dialogando distraidamente.
Aconteceu que meu sobrinho, sem perceber, travou a porta do quarto e entrou em desespero, em pânico, e até vomitou, pois ele tinha apenas 4 anos de idade.
Mas ele melhorou, quando meu irmão abriu a janela, e disse: ‘oi tio’.”


18/2/2000
Já quase noite. Espero que dure poucos dias mais essa minha agonia. Tive que mandar minha mãe levar de volta o livro que ela tinha me trazido, pois não estava conseguindo ler. Tenho muito sono, e muita sede também. Durmo. “Durmo até o nun-ca” como a Macabéa, personagem de A hora da estrela, de Clarice Lispector. Durmo muito, além da conta. E tenho pouca concentração. Tudo é efeito do medicamento, acho que é aldol com fenergan.
Disse para o médico que seria isso, mas parece que ele não entendeu. O que acontece é isso: eu durmo muito de leve e fico sonhando o tempo todo. Parece que eu não dormi nada. Entenderam? É horrível, pois a gente tem sono o tempo todo. Uma vontade de dormir, leve, mas persistente. É horrível. Tudo igual. Tudo como an-tes no país de Abrantes. Será que é assim também no primeiro mundo? Será?

17:10 minutos
Agora RSC, o sereio, vai tomar banho. O negro gato está tomando. E eu vou ficar sozinho no quarto. Alguém escreveu mais ou menos assim: “A vida é mais dor/ sofrimento que alegria.” Talvez Schopenhauer (não com essas toscas palavras, é cla-ro).
Parece que o que o ser humano precisa é converter em alegria, mesmo que uma alegriazinha meio amarelada, ou seja lá que nome a gente queira dar a esse sen-timento, um pouco da dor para equilibrar mais a balança.
Penso em CC, ele volta sempre em meu pensamento. Eu amo/amei um al-guém que nem sei quem é. O que poderíamos dar um ao outro? Por que ele nunca liga, porque ele nunca me procura? Mas como saber, se eu estou aqui internado?
Valerá a pena amar, se entesar, se apaixonar por um alguém que nem rosto tem? E eu, que tenho muitas faces, que sempre falo claro, poderia dizer a ele: “CC eu quero te conhecer, poder te amar, entende? CC, eu te amo.” Tudo já é repetição.
Daí me lembro, agora, do Fernando Pessoa: “Todas as cartas de amor são ridículas, / mas não seriam cartas de amor se não fossem ridículas...” Mas eu prefiro mergulhar no ridículo do sentimento a ficar duro, inflexível, gelo como muitas pessoas são. Pelo menos fica alguma coisa para lembrar, para a gente rir depois.

19:45 minutos
Daqui a pouco teremos chá novamente. Às 20:30 minutos. Vai ser tudo igual, é claro. Por ora, paro um pouco, que nem eu mesmo tô mais me agüentando.

20 horas
Voltei, negada. Amigas, acabo de armar o maior barraco. Não escrevi na hora. Agora não me lembro mais o que eu ia escrever. Se eu lembrar, escrevo depois. Todo mundo começou a entrar no meu quarto. Merda, ninguém me deixa escrever.
Que saco. Tinha uns 44 jovenzinhos que entraram e não pararam de falar, me incomodando. Mandei todo mundo embora. Mandei todo mundo “caçar sapo com bo-doque”. Quem se lembrou dessa expressão foi o negro gato.

19/2/2000
8 da manhã - Frio e sem sol.
G. me disse que não sabia escrever, mas me deixou algumas palavras escri-tas.
Existe uma Beleza que transcende a beleza. Existe uma Beleza que toca uma suposta Verdade. Para mim, esta Beleza, no agora, encontrei nestas palavras de G. Estas palavras me tocaram fundo, pois na minha situação a gente fica, pelo menos eu, mais sensível a qualquer palavra que nos é dita ou escrita.
M defende tese na 3ª feira. Boa sorte M. Depois conversamos, pois ao que tudo indica, estarei aqui no Tibiriçá ainda.
A estória de M conto depois. Coitada, está há quase sete anos tentando de-fender sua tese que já está pronta, e por causa de briguinhas de professores na Uni-camp não consegue.

12 horas
Almoçamos às 11 horas, como sempre. Estou tentando dormir há uns quaren-ta minutos, mas não consigo. Fui escovar os dentes no banheiro maior, impossível, pois alguém tinha vomitado até a alma na pia. Puro vômito. Degoulasse, como se diz em francês. Nojento.
Falando do francês, lembro do meu belga CC. Lindo e intocável. Ele cria uma distância, uma barreira de vidro intrasponível entre ele e os outros, entre ele e as coi-sas. Falando em coisas lembro do Heidegger. O que é uma coisa. Impossível se en-tender por inteiro. Acho que Heidegger também colocava uma barreira intransponível entre ele e o mundo fenomênico (credo!!!). Paro por aqui.

12:27 minutos
Aqui, no hospício, as pessoas apenas esperam o dia seguinte. Acho que lá fora também. As pessoas comem, bebem e dormem. Fumam também. E muito. Ci-garros normais ou picadão (quando têm pouco dinheiro, pois um saquinho de fumo custa 70 centavos e dá para fazer um monte de cigarros).
Cigarros podem significar motivos de briga. A gente joga uma bituca mínima. Depois de um momento não é que tem alguém fumando aquela bituca. Sobra só o filtro, e olhe lá.
Aqui sobrevive melhor o mais esperto, o mais descolado. Diferentemente da estória das galinhas da Biologia. É assim: você coloca 10 galinhas num galinheiro. Uma delas apanhará de todas as outras na busca de comida (coitadinha). Uma se-gunda galinha apanhará das 8 outras. Uma terceira galinha das 7 outras.
E assim por diante até que chegar numa décima galinha que não apanhará de ninguém, batendo em todas as outras nove. Lei do mais forte. Lembro do Machado de Assis e a história do campo de batatas, a teoria do Humanititas. Brincadeira séria es-sa do velho Machado de Assis, que saiu do Rio de Janeiro apenas uma vez em sua vida, se não me engano, só uma pequena viagem até Barbacena.
Acabo de ir ao banheiro aqui em frente. A nojeira continua. Duas privadas cheias de merda. Não dá para amenizar. Falar bonitinho etc. O banheiro está literal-mente cheio de merda. O cheiro é tão forte que já está impregnando o meu quarto que é em frente ao banheiro.
R, o sereio; e A, o negro gato, estão dormindo pesado. Mas para mim não vem o sono. É isso, vou parar um pouco. Muito cansaço.

19/2/2000
Tenho pensado na minha vida de antes. Para mim parece que morri no dia em que entrei aqui. Começo agora, aos 33 anos, tudo do zero.
Coisas que já decidi. Vou ficar, por enquanto, na casa dos meus pais. Não vol-tarei a morar com H. Deus, se existe um Deus, sempre protegerá H, os cachorrinhos e a casa. Vou ficar na casa dos meus pais por pouco tempo. Só até ganhar grana para morar em São Paulo.
Depois viagens cada vez mais longas. Primeiro Arizona, nos Estados Unidos, falar com DWF, um estudioso da obra de H. Depois Europa - Inglaterra (talvez), uma temporada curta em Londres; Paris, uma temporada mais longa; Itália, descer toda a Itália, até a Grécia; subir, depois, todo o continente africano até Egito. Depois Israel, países árabes... até a Índia, Tailândia, China. Por fim, Japão - volta ao Brasil.
Mais ou menos 4 anos de viagem. Se estiver vivo ainda, ufa!, vou ter 37 anos e vou estar exausto. Depois, doutorado na Sorbonne até 41/42 anos. Pós-doutorado na Sorbonne também, até 45/46 anos. Daí vou estar mais exausto e doze ou treze anos mais velho do que hoje. Fica aqui escrito, para gente ver o que vai realmente acontecer.

O meu projeto inicial é esse que fica aí escrito. Terei que trabalhar muito e guardar grana. Coisa difícil para mim. Acho que vou precisar de uns 15 mil dólares. Nem sei. Vou ter que me informar direito.
Tenho que trabalhar com os arquivos da H da LF e levantando grana para os CD’s que vamos fazer na ‘PB’, a produtora do ZB.
Tudo, para mim, neste momento, está em 2º plano. É algo meio egoísta, ou totalmente egoísta, para dizer a verdade, mas tem que ser assim. O problema atual é só dinheiro. Quero levantar o máximo que puder, até abril.
Fico aqui até o aniversário de H e depois faço a viagem até os Estados Unidos - Texas. Quem sabe o DWF (professor universitário nos EUA) não possa me ajudar. Tipo arrumar uma palestra etc. O meu verdadeiro interesse é conhecer a Self-Realization Fellowship, instituição criada por Paramahansa Yogananda, localizada na Califórnia etc. Cansei de escrever.

19:50 minutos
Tudo igual. Mamãe e papai, meu irmão e dois tios vieram para a visita. Mamãe trouxe lasanha etc. Às 16 horas eu já estava cansado. Não agüentei ficar até as 16:30 minutos. É sempre assim. Nunca agüento ficar até o fim da visita. Meus pais sempre tão bem comportados.
Daqui a pouco teremos chá com bolachas água e sal. O mesmo de sempre. Depois às 21 horas teremos remédios para dormir. Amanhã será domingo. Acho que na 3ª feira terei alta. Devo sair daqui na 4ª feira. Espero que tudo dê certo, estou con-tando nos dedos as horas para eu ir embora. Tenho saudades do B, e ficarei, parado-xalmente, de alguma forma, com saudade daqui.

20:10 minutos
Agora penso em CC de novo. Penso ou finjo que penso para ter alguma estó-ria para contar. Agora, falando seriamente, CC é uma pessoa importante para mim. Quero que ele fique bem. Quero que ele seja feliz. Só assim eu ficarei melhor tam-bém.
Gostaria de me aproximar dele, agora de outra forma, sem o desconcerto ante-rior, sem o jogo da loucura. CC, eu quero te dizer que te amo de alma, de coração inteiro, entende? Lembrei-me de um poema meu, que te deixo agora:

Atados a ti:
meu nome
minhas claras palavras
meu reluzente sexo.

Atado inteiro, entendes?

Não basta a mansa
geografia dos pretextos.
Me beija,
te faz mais factível
do que teus nítidos traços.


Entendeu, CC?
Entendeu?

19/2/2000
Diário de ALA.
8:50 minutos
Sol
“O que é a vida do ser humano?
A vida do ser humano é destacada em várias fórmulas até compreender que o mais gostoso é ser feliz a vida é que mais importa para nós. Felicidade é um espaço que recebemos durante uma determinada circunstância da nossa longa caminhada nossa vida tão confundível que todos sejam felizes e assim seja (Amém).”

19/2/2000
Diário de algum anônimo
9:45 minutos
“Nesta data de hoje às dez horas do dia, meus pais ainda não vieram me fazer uma visita.
Talvez eles não se lembram do maldito caminho, e talvez não sofreram algum acidente.
Mas eu acho que vou ficar mais dois meses neste lugar desgraçado.
Eu estou marcando os meses e os dias, apenas deduzindo os dias e as noi-tes.”

19/2/2000
Diário de MAHN.
“Parabenizo vocês todos de Joaquim Egídio que no começo achei pessoas rebeldes. Vocês todos são seres maravilhosos, agora me desculpem que tenho pro-blemas com Deus. Em vez de vocês pensarem no erro, pensem no positivismo, pen-sem nas coisas boas da vida e que tem pensamento, na refere (?) a mim Jesus se você pensa muito em você não podemos ser egoístas.
Você é ser realizado Jesus. Se você me ajudar um pouquinho a sair de hospi-tal é o que mais que eu quero. Deus, entro no assunto seicho-noie do Brasil com Je-sus também.
Você tem que ter sua alta, será mais breve possível. O nosso ser é imortal, dá importância no Evangelho, também na seicho-noie do Brasil, pode saber que eu não trapaceio ninguém, todas as pessoas são ótimas. Cada uma tem seu jeito perfeito de ser.
Você tem que começar a dormir, tomar um ar puro aí então você entra em sin-tonia com Deus. Não tenha medo do destino das pessoas belas, mas o que mais que-ro é minha alta. Deus, você é maravilhoso. Você veio me aproximar do Edson que é um ser sublime. Nós somos crianças iguais a ti e tu também meu caro senhor. Tomar um pouquinho de sol.”

19/2/2000
20:30 minutos - Eu, de novo.
Não consegui escrever nada. Estou vazio de corpo e alma. Um desespero que vem e passa, como tenho sentido desde que entrei aqui. Muito cansaço. Só consegui dormir às 23 horas.

20/2/2000
8:10 minutos
Diário de LAA.

“Jesus é o caminho, a verdade, e a vida.
Jesus nos deu tudo
a felicidade
o amor
a paz
a alegria
o prazer
a vida e
a vida eterna.
Amém.”

8:20 minutos - Eu escrevendo novamente.
Acordei cedo, como sempre. Tomei os remédios. Comi pão com manteiga e bebi leite. Depois fui buscar o meu caderno para anotar coisinhas. O R estava sentado comigo no banco, mas já foi embora. Agora a pouco ouvi o canto do bem-te-vi, agora de novo, é o pássaro de que mais gosto ouvir o canto.
Lembrei uma música do Paulinho Pedra Azul: “Bem-te-vi, bem-te-vi, andar por esse céu azul, cruzar estradas do além, onde estarás meu bem. Bem-te-vi... Onde estás, nas nuvens ou na insensatez...”
Daqui a pouco vou ligar em casa para ver o que mamãe vai trazer para mim. Acho que vou falar para ela ligar para a R e para a P dizendo que estou internado a-qui. Cansei. Paro por aqui.

8:40 minutos
Só vou poder ligar às 9 horas. Música no rádio: “desesperadamente apaixona-do/quero seu amor...” Nunca ouvi tanta música-lixo como estou ouvindo aqui. Talvez seja para eu aprender. Outra: “Não adianta, você me encanta. Estou decidido a roubar teu coração...” Laser FM.

9:10 minutos
Agora uma música na Laser FM - “Pôxa”, do Martinho da Vila: “Eu te falei que você não ficava nem uma semana longe deste poeta que tanto te ama, longe da ba-tucada e do meu amor...”

20/2/2000
Domingo
10:11 minutos
NADA.NADA.NADA.

10:50 minutos
Hora do almoço. Todo mundo trancado no refeitório. Para ninguém fugir. De-pois do almoço: REPOUSO. DESCANSO. De fazer o quê? NADA. NADA. NADO NO NADA.

20:00 hs.
Vendo “Domingão do Faustão”.
Na televisão um concurso de calouros. Sobraram 28 ao que parece. Duas mo-ças já se apresentaram. Débora Lima e Agda de Oliveira (de Volta Redonda). “São duas das vinte e oito...” - Fausto Silva diz. Depois do reclame do plim plim, vídeo cas-setadas e a atração da Suécia A2 ou ATeen não sei bem. Comercial.
Aqui no Tibiriçá, hoje tive um domingo um pouco mais agitado. Tive muitas visitas. C e Zez. C. me trouxe uma pizza deliciosa. A máquina de lavar roupa dela quebrou, senti um grande cansaço no olho dela, e também uma vontade de estar em casa. Ela me trouxe também a Folha de S. Paulo, o “Folhetim” do Bergman. Não tive vontade de ler.
Acho que visitas me cansam bastante, e elas também se cansam. Tomei muito suco de maracujá que mami trouxe e caí duro na cama. Dormi das 17 até mais ou menos 19:30 minutos. Volta o Faustão.

21/2/2000
10:10 manhã
Daqui há dois meses é o aniversário da H. Ela vai fazer 70 anos. 21 de abril de 1930 foi quando ela nasceu. Penso que ela está bem forte. Considerando o que ela já fez na vida.
“Oh, meu amor, não fique triste, saudade existe pra quem sabe ter. Minha vida cigana me afastou de você... Penso em você a cada momento.” Música no rádio. Esta é um lixo que eu até gosto.



22/2/2000
12:40 minutos mais ou menos
Hoje aconteceu o mesmo de todos os dias. A única exceção foi a conversa com a psiquiatra, “dona” Creuza. Ela é/me pareceu tão mal informada como todos os outros que conheci. Exerce a função, compenetrada (“penetrada”) e oca como os ou-tros.
Queria dormir depois do almoço, coisa que não foi possível porque meu quarto lotou de gente, e todo mundo não parava de falar. Meu quarto agora virou o point aqui do hospício. Acho que a gente devia começar a cobrar ingresso. Resumo da ópera: nada de sono. Paro agora um pouco. Preguiça. Corpo mole.

12:50 minutos - Sol com nuvens.
Liguei para mamãe às 9 horas e pedi para ela e meu pai virem aqui, na hora da visita, e pedirem minha alta, pois não agüento mais ficar aqui. Hoje fiquei sabendo que é possível eles me tirarem daqui só pedindo a minha alta e assinando um termo de responsabilidade etc. Aí eu continuo tomando os remédios em casa etc. Talvez eu possa sair ainda hoje mesmo daqui.
Aqui no quarto agora só estamos em quatro: A, R, M e eu. Espero que abram logo a porta para a gente poder sair, isso só será feito às 13:30 minutos. O rádio está ligado. Programação de sempre. Os “loucos” continuam “loucos” e os “normais” conti-nuam “nor-mais”.
M estava/está com piolho. Agora encanei que estou com piolho também.
Penso em alguma coisa que posso fazer para conseguir dinheiro para a com-pra do sítio no Rio para CC, ou melhor para a ONG no Rio de Janeiro. Posso escrever um artigo para o Correio Popular, de Campinas, para a Folha ou para O Estadão, ou qualquer outro jornal, pedindo ajuda para os leitores.

13:05 minutos
É claro que misturo o meu desejo de CC com a ajuda para a ONG, da qual ele é o Coordenador. CC, em si mesmo para mim é algo glacial; algo tão gelado que nem o fogo de minha paixão (credo!!!) pôde derreter. Que piegas isso!

22/2/2000
18:55 minutos
Nada deu certo. Nem sei quando vou sair daqui. Talvez mais 7/15 dias. Minha mãe quer me manter grudado nas asas dela. B, que tinha recebido alta, entrou nova-mente neste segundo, deve ter ficado em casa só uns quatro ou cinco dias.
Ele deve ter fumado crack de novo. (Na verdade, como fiquei sabendo depois, ele tentou se matar ingerindo produtos de limpeza) Talvez eu fique aqui mais dias para que o diário fique maior. Quem saberá? Aqui tem mais doze folhas para escrever. Penso que será o suficiente. Estou muito cansado. Dormi das 16 até as 18:30 minu-tos.

23/2/2000
8:40 minutos
Um pouco do dia a dia do hospício: somos chamados/ acordados às 6 horas da manhã, para tomar café só às 7:30 minutos ou mais tarde (não entendo essa lógi-ca portuguesa), ficamos 1 hora e 30 minutos sem fazer literalmente nada. Às 7:30 minutos café da manhã e remédios. Depois esperamos (trancados no refeitório) até mais ou menos 8 horas, até que todos tenham tomado remédio e café da manhã.

9:10 minutos
Até agora não nos liberaram para ir até a cantina, nem telefonar. A gente tem que esperar os auxiliares de enfermagem medirem a pressão de todo mundo.
Bambam, o nhonho, não pára de falar um minuto. M também não. Mexe onde não pode. Arruma treta/briga com todo mundo. Às 11 horas almoço. Muito bem feiti-nho (quem saberá?) pelas cozinheiras. Elas trabalham duro. Devem ficar de saco cheio, mas estão sempre sorridentes.
Veio uma moça (perto das 9) dizer que nada de “alta”, mas podem me liberar 48 horas (no fim de semana) para eu ir até em casa. Depois volto.
Tomara que essa novela de hospício acabe logo. Já estou de saco cheio. Não agüento mais ficar aqui sem fazer nada. A gente tem que ficar andando o tempo todo. Para MATAR TEMPO. Não agüento mais o papo recorrente dos loucos.

10:50 minutos.
NADA. RIEN. NOTHING. NIENTE. NADA. Hora do almoço. B vem conversar. To-mou um coquetel de produtos de limpeza para morrer. Mas não morreu.

23/2/2000
14:30 minutos
Diário de B, que saiu de alta e voltou.
“Oi, Edson, eu estava de alta, lembra? Pois é, saí da clínica e fui para casa, minha mãe veio me buscar, estava tudo bem.
Aí, então cheguei em casa, descansei, relaxei e tal.
Fiquei praticamente uma semana quetinho em casa, não saía para nada.
Minha mãe que fazia as minhas coisas e tal.
Bem, tudo corria bem até que uma hora ou outra eu escutava vozes, mas pe-dia para Deus me iluminar e tal.
Bem que eu disse, corria tudo bem. Até que minha mãe me levou eu para a casa do D para passar uns dois dias lá.
Bem, ficamos lá, no dia seguinte o meu padrasto foi trabalhar cedo e a minha mãe foi levar o meu irmão no médico.
Beleza estava apampa em casa, aí então começo de novo a ouvir as vozes, que eu teria que ir nessa (me matar) umas duas vezes.
Beleza. Tomei um café, depois tomei um banho e na terceira vez eu não a-güentei, peguei um copo vazio e coloquei dois tipos de detergente, solupam e desen-ferrujante de aço, tomei uma dose de conhaque, fumei um cigarro, depois disso pen-sei nas vozes que diziam assim (diz) (diz) foram estas que me perturbaram. Virei o copo na minha boca e era parecido óleo de carro grosso no meu estômago. Aí depois joguei o restinho na parede e fiquei quieto esperando a morte.
Aí pedi que me levassem ao hospital, me fizeram uma raspagem, tomei soro e voltei para cá.
Foi outro surto distúrbio mental e é lógico a enfermidade.
Só.”

16:20 minutos
Volto da visita. B deixou escrito o que está aí. Penso que devo estar bem. Ao menos muito melhor que ele. Tenho, cada vez mais, menos vontade de escrever nes-te diário. Parece que tudo o que eu deveria escrever já está escrito. Não sei.
No entanto, continuo. Feito o Samuel Beckett. Ele escreveu tudo o que queria, o que almejava escrever. Reduziu tudo ao máximo que podia compreender de si mesmo e do mundo. Depois continuou escrevendo tudo o que não queria, o que não almejava, o que “não podia” escrever.
Talvez, não, COM CERTEZA, ELE É O ESCRITOR QUE MAIS ADMIRO, o cara com quem eu mais me identifico, o que eu mais INVEJO, no bom sentido, aquele que eu mais queria ser idêntico. Beckett em si é um mundo. Uma emaranhada teia de ara-nha.
Daí penso que estou escrevendo dos outros para não escrever de mim mes-mo. Daí penso em Antonin Artaud, que escreveu a mais complexa frase que já li: “O mundo é o abismo da alma.” E numa frase de Valéry que BW me disse em Vitória, em Espírito Santo, em dezembro de 1998: “O mais profundo é a pele.”
Pessoas como essas, que chegam a esse grau de concisão, não merecem ser lidas apenas, elas merecem ser ruminadas, feito a vaca e o boi comendo capim. Não sobra nada que se perca no fim. A gente engole tudo. Tem que sugar todas as vitami-nas do capim.
“O mundo é o abismo da alma” é uma frase em que a gente pode pensar a vida inteira. Toda a vida. E Kafka também: “Eu sou um pássaro impossível”. A palavra “kafka” é gralha na língua tcheca. E assim por diante. Eu comigo mesmo: “Estou cada vez mais fundo.” A frase, agora, é minha mesmo.

23/2/2000
17:25 minutos
Converso com R sobre as sereias. Ele me diz convicto que ele é um sereio. Há alguns dias ele escreveu no meu caderno e desenhou umas sereias, mas depois ras-gou tudo. Agora me fala da casta das sereias e sereios e da oração que fez para Ie-manjá e Iansã. Ele me diz que tudo é segredo e não devo dizer para ninguém. Res-peito R e não vou contar o segredo (os nomes das sereias e dos sereios) a ninguém. Talvez só conte para a C, para ela fazer o doutorado dela. Procurarei guardar “a sete chaves” o segredo de R. Deus, por favor, me ajude a guardar o segredo. Confiarei em você.

18 horas
Hoje, na hora do jantar, teve um cara que comeu tanto que depois vomitou tudo. A maior nojeira. Ainda bem que eu já tinha comido e pude sair rapidinho. Os banheiros são merda e xixi puros. Parece que eles fazem aqui tudo o que não podem fazer em casa. “La mer d’ici, la mer de là” (“O mar daqui, o mar de lá”; mas dá um tro-cadilho com merde = merda) como dizem os franceses. Hoje conversei com o J, por telefone, parece que vai dar certo o meu diário sair no jornal. Tomara.

20 horas
Hoje estou aqui há 16 dias. Amanhã talvez eu consiga uma licença de 48 ho-ras na 6ª feira. Sairei na sexta e voltarei no domingo se tudo der certo. No começo tudo foi meio de brincadeira para mim, depois as coisas foram ficando meio baças, meio escuras. Gostaria de sair logo, para poder levar alguns projetos adiante. Quero trabalhar bastante para pode ter grana e viajar. Tudo isso eu já escrevi antes.
Agora, estou bem. À noite, na hora de dormir é a pior parte do dia. Bem, por-que nesta hora é que a gente vai repassando, repensando a nossa vida. Pelo menos comigo é assim. Então, à noite-hora de dormir, eu vou pensando no que já fiz e no que terei de fazer ainda para chegar a qualquer lugar ou a lugar algum, quem saberá?
Então, à noite é que penso muito no que tenho que fazer; e também penso nos cachorrinhos de H, principalmente na Bien Niègre, a Bem Preta, a quem eu amo mui-to. Rezo por H, pelo JL, pelos cachorrinhos todos. Às vezes rezo mentalmente para um por um dos que estão vivos. E os que já morreram também: a Quinquim, a Mel, a Gigi Pompom, o Pituca, o Dodô etc.
Agora estou escrevendo isso e já vejo raios e trovões no céu. Mal sinal, porque sei que a H deve estar morrendo de medo. Não tenha medo não, viu H, é só chuva, viu? É Deus chorando pela humanidade toda. Por tudo de podre que há no mundo, viu?
De H até CC minha cabeça vai num momento. CC é prepotente, cheio de si. Ele cumpre bem o papel de CC. Penso que ele é só quase máscara. Também quando ele quis se abrir comigo eu não dei espaço para ele.
CC, acho que você é ingênuo para a vida. Afinal, ele não foi padre até os 40 anos? Só depois disso é que ele começou a saber um pouco o que é a vida. E vai encontrar, agora aos cinqüenta e tanto, um cara como eu!! Não dá para entender mesmo!?!? CC, eu gosto muito de você. Te amo mesmo. Desculpe qualquer palavra mal dita. Assino: Eu.

21 horas
De qualquer forma, existem pessoas que foram importantes para mim. CC é a última pessoa que conheci e a quem admiro. Não dá para ficar fazendo essa coisa da vitimologia, do coitadismo, como se eu fosse o cordeiro e ele o lobo.
Existiram em mim muitas coisas que fizeram mal a CC. Não devo pedir descul-pas nem a ele nem a ninguém. Não devo pedir desculpas porque, afinal de contas CC acabou me conhecendo mais sem máscaras.
O que acabou acontecendo foi que ele também quis me usar para brincar um pouco e acabou se enroscando no jogo que ele mesmo quis fazer.
Agora acho que está na hora de parar, descansar um pouco. Dormir, quem sabe para acordar no amanhã. É sempre assim, queira eu, ou não queira.
Lembro agora da peça daquela francesa, Emma Santos, O teatro: “Por mais tofranil, lagartil, nembutal que tomes, a manhã volta, volta sempre...” Mais ou menos isso.

24/2/2000
7:15 minutos
Estou acordado desde as 6, parece que daqui a pouco vamos tomar o café da manhã: leite e pão com manteiga. A. vem dizer que sonhou que estava num ginásio de futebol onde ele ia jogar. DAHORA é a palavra que mais repete. D vem me pedir papel e caneta toda hora. Ele parece um índio, aliás, ele deve ter pai ou mãe índios. Já dei a ele um monte de papéis e duas canetas, mas ele sempre perde. Diz que rou-baram dele.

9:45 minutos
Até agora não liberaram para a gente ir à cantina tomar café. Nessa hora os “loucos”, hoje, estão bem comportados. Contei hoje quantas pessoas já poderiam ter alta, dá mais ou menos uns 15. Vou tentar fazer a lista. Deixo no final deste diário.

11 horas
Saí para ir à cantina. Conversei com a minha cunhada, L. Ela trabalhou a noite toda e ainda não tinha dormido etc. Agora é a hora do almoço. Conversei um pouco com B. Ele continua falando as mesmas coisas do “suposto suicídio” dele.

11:20 minutos
Acabo de almoçar. Torta com algum tipo de salsicha/lingüiça, couve-flor e ar-roz. Comi automaticamente e rápido. Estou com sono agora. Vou dormir. Tchau ami-gas.
Tenho estado triste. Hoje li um pouco do livro bíblico Apocalipse. Tenho dito. Mas seja o Benedito. Benedita é o nome da gata da ZP. O nome do meu é Fernando Klimt. Fernando, de Fernando Pessoa, o escritor. Klimt, de Gustav Klimt, o pintor. T-chau. Tchau. Beijinhos e beijinhos amigas. E tchau tchau. Parei. Stop. NADA...

12:20 minutos
Como não consigo dormir, só me resta escrever. Acabo de dar um cigarro para um dos internos. Ele me deu bolachas salgadas em troca. Uma delícia. Dessas bem porcarias mesmo. Puro óleo. Mas estavam boas. Afinal, quando a gente tem fome, qualquer coisa é boa.
Lembrei agora do cara bem esperto que fingiu que estava fazendo uma sopa de pedras, pois não tinha mais nada. Passou um, ficou com dó, deu um pedaço de carne. Passou outra, ficou com dó, deu umas cenourinhas, outro macarrão, um outro batatinhas. O cara acabou tendo o maior banquete. É claro que antes de comer ele jogou as pedras fora. Essa estória meu pai me contava quando eu era criança.
Agora já deve ser mais de 12:30 minutos, eles (os auxiliares de enfermagem) vão abrir a porta para a gente sair a 1 hora. A visita começa às 14:30 minutos. O cha-zinho/ lanchinho é às 14 horas. Remedinho também. Cansei. Paro. STOP um pouco.

13 horas
Estou escrevendo, mas agora ainda são 12:45 minutos. É que não consegui esperar até as 13 horas. O chato, o mala sem alça do M. aporrinhou tanto a moça da faxina que conseguiu seu intento: o primeiro de aparecer; e também conseguiu um outro colchão, porque ele disse que o seu estava todo cheio de mijo. Deve ter sido ele que mijou no colchão todo.
Agora eu queria ser um pouco mais grave.

Grave
a asa
quebrada do tempo
sobre a noite do meu corpo.

Grave
o instante
o susto
de não-ser
grudado ao tempo.

Fiz esse poema há uns sete anos e ainda gosto dele. Sei mais ou menos de cor várias coisas que escrevi e das quais gosto muito até hoje. Outro poema:

Gasta.
Dispende
os teus dias.
Desgasta
a ossatura da vida.
Passa.

O M não pára de falar um minuto. Ele é quase insuportável como pessoa. Co-mo muitas vezes eu também sou. Estou procurando ter uma paciência de Jó com ele. Espero que eu consiga.

24/2/2000
13:10 minutos
Daqui a 20 minutos a porta para fora será aberta. Depois, no horário da visita, penso que não haverá Terapia Ocupacional de novo. Em 16 dias que estou aqui, só duas vezes o terapeuta ocupacional apareceu. Él parece que é o nome dele. Talvez eu esteja errado, mas eu só trabalhei uma vez no ateliê.
M continua cantando feito uma arara louca. Um “paciente” fez xixi na varanda toda. Outro vomitou no banheiro. Isso aqui é um lixo. Que pena! (besteira isso aí escri-to).
Parece que a loucura é a porta do purgatório. É só dar uma abridinha na porta e está lá, Ela, a LOUCURA olhando para todos nós. Começo a ter momentos de de-pressão cada vez mais intensos, duros e fundos.
Não agüento mais ficar aqui. Só brincando um pouco, rindo um pouco. Remé-dio é bom. Lobotomia modernizada. Tchau, capetinhas!!! Tchau, Loucura!!! A-deus (há deuses) para todos nós. Tô mal.

13:50 minutos
Agora já está tudo aberto. O rapaz chama para o remédio, antes da hora. A fila se forma rapidamente. Vou deixar para tomar por último.
Agora estão falando do Feijão, o JB, que adora feijão, come e fica peidando a noite inteira. Já chamaram para o remédio/chá faz uns dez minutos e nada. Por isso que é uma grande besteira ficar na fila. Espera e cansaço inúteis.
Escrever à caneta cansa a mão. Escrevi só nove linhas e já estou cansado. Queria que meus pais, parentes e amigos vivessem esta experiência que estou vi-vendo. Como é que eles se comportariam? Resposta inútil. Só se eles fossem levados a essa experiência por algum motivo.
As pessoas da fila começam a se sentar no chão. Quase 15 minutos de espe-ra. Devem estar cansadas de ficar em pé. Os funcionários procuram cumprir os horá-rios, mas é muito difícil. Eles são poucos para cuidar de muitas coisas.
Depois do remédio e do chá, temos visita às 14:30. É meio cansativa a visita. Dá vontade, em mim, de voltar logo e me deitar. Talvez isso seja efeito do remédio.

17:30 minutos
Hora da visita. Minha mãe trouxe suco de maracujá. Bebi muito. Acordei só na hora do jantar. Eram mais de cinco. Comi rápido. Ovo, gelatina, chuchu e arroz.
B e A roubaram os dois pirulitos que eu trouxe, que minha mãe me deu, o ma-ço de cigarros também. Aqui não cabe a máxima: “Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão.” Ponto a menos para eles no livro das boas ações.
Talvez eles não tenham mais conserto mesmo. Talvez o destino dos dois seja a tragédia cotidiana. Se eles fazem isso com um amigo, o que fariam se eu tivesse bastante dinheiro na sacolinha com os meus pertences? Se eles fazem isso comigo, o que não fariam com um não-amigo? Eles não são boa companhia!!! São ladrõezinhos baratos, de roubar qualquer coisa! Paro um pouco. Depois continuo.



18:00 horas
Penso em CC. Sempre ele volta. Gostaria de conversar com ele quando saís-se daqui. Ele é belga. Deve ter mais de 1,90 m de altura. Olhos azuis etc. Isso é CC por fora. Por dentro pode ser muito mau, ou muito bom (...)
O que posso dizer é que CC trabalha muito para ganhar muito pouco. Não tem tempo para si, nem para os amigos. Seu nome é TRABALHO. Ocupa 100% do seu tempo para os outros. Penso que sua vida de amizades, amorosa e sexual não deve estar bem.
Sobra tempo para uma pessoa que trabalha tanto, que vive em aviões para pensar em si? Acho que não!!! Mas já estou, eu, tentando interferir, querendo mudar a vida alheia. Tenho que lembrar: CC não é propriedade minha, ele não me pertence. Ele é propriedade dele mesmo. O seu destino a Deus pertence.

24/2/2000
18:10 minutos
Briguei com a R, a P e a E. Tenho que me desculpar com elas. Certamente elas não vão querer me ver durante muito tempo. Estarão certas, porque com certeza eu as ofendi bastante.
Difícil escrever neste caderno sem um apoio adequado. Esta será a penúltima página deste diário. Estou escrevendo aqui fora. Ouço os pássaros cantarem, os car-ros passam etc. Tudo misturado. O antigo e o novo. Bossa Tarsila do Amaral e Os-waldo de Andrade. Tudo continua o mesmo depois de 80 anos. O moderno e o arcai-co. Parece que estamos cada vez mais próximos da Idade Média. Veja-se os camelôs invadindo tudo. Veja a rua 25 de março em São Paulo. Veja o edifício Copam etc.
Minha mãe e meu pai já estão com 61 e 66 anos. Talvez eles não vejam algu-mas mudanças que acho que vão ocorrer. O Capitalismo em AUTOFAGIA, isso mes-mo, o Capitalismo se comendo a si mesmo. Onde chegará tudo isso?
Neste exato momento, na rua, passa uma carroça, um carro de passeio, ouço o trotar do cavalo. Idade Média pura. Minha cabeça coça. Será que eu peguei piolho do M? Será que é caspa? Será que cuspe resolve? E diabo-verde? Quem saberá? Daqui a pouco, se estiver com vontade, vou tomar banho. Acho que não, vou ficar com esta camiseta suja mesmo. Sujo mesmo, quero dizer.

18:20 minutos
Como a H. diria: “Não vou ver a rainha da Inglaterra mesmo, para que vou me lavar e trocar de roupa” Sei que ficarei tristíssimo quando H. morrer. Espero que de-more bastante. CC também. Papi e mami também etc

18:30 minutos
Agora está bastante calor, nuvens cobrem o céu. Parece que vai chover. O que escrever agora? Para mim, é difícil manter qualquer disciplina. O diário tem sido uma forma de eu escrever todo dia. Ao menos uma linha que seja, mesmo em condi-ções precárias como as em que eu me encontro. Devo escrever mais devagar para ficar mais legível, senão só eu poderei ler o que foi escrito.
Estipulei que hoje, 13 dias de escrita, será o último dia deste diário. Talvez haja outros diários, quem saberá? Parece que os deuses me prescreveram vida longa, ao que me consta. Depois que sair daqui, venderei a maior parte dos meus livros, depois viajarei um pouco.
A procissão tem treze estações. Treze são as chagas de Cristo. Treze é san-gue. Treze são os títulos que Clarice Lispector escolheu para o livro A hora da estrela, último livro que ela escreveu em vida. Clarice morreu de câncer. No Rio de Janeiro. Aos 57 anos de idade. Escreveu muitos livros. Fiz um trabalho de mestrado sobre a obra dela: Clarice Lispector: máscara nua.
Não sei se volto para o meio universitário. A única coisa boa é poder viajar. Se eu conseguisse fazer doutoramento na Sorbonne, aí sim seria bom. Talvez com a JK, com quem um antigo professor meu de cursinho, A, estudou. Verei se é possível ou não. Do contrário, não sei se valerá a pena. Pensar nisso. Não me precipitar. Fazer tudo com muita calma.
Fiz aniversário, 33 anos, no dia 10 de fevereiro, este mês. Parece que foi on-tem. Preciso arrumar dinheiro para pagar minhas contas. Mais ou menos 500 reais. Mas como? Vendendo livros; dinheiro do texto que foi publicado no jornal etc. Acho que arrumo logo que sair daqui. Pensar nisso depois.
Minha mãe e meu pai são muito bonzinhos; mas, da mesma forma da médica, que tem instrução, eles, que não têm, dificilmente me compreenderão. Me resta, por-tanto, a resignação. E tentar ficar bem “normalzinho” para receber alta logo. Quero sair daqui o mais rápido possível. Não suporto mais. Sair daqui, para ir para casa, e depois para o mundo, se possível.
Como estarão E, P e R? Acho que elas querem me matar, ou me ver morto. Melhor não falar, nem pensar nisso. Com o tempo tudo se resolve. Esperar. Essa é a única coisa que tenho que fazer.

18:57 minutos
CC, você quer um chá quentinho hoje à noite? Um licor que eu comprei só para você? CC, eu quero ser sua “gueixa” por um dia, você deixa? Que eco horrível esse aí detrás.
Queria acabar com algo grave.
Só poesia.

Nós somos fênix.
Sísifos maduros.

Não dispomos de tempos.
Sabemos bem o que é o agora.

Mitos tardios.
Racionais macacos.




S E G U N D A P A R T E

26/2/2000
Depois de treze dias escrevendo essa coisa aí de cima, resolvi mudar de táti-ca. Descrever o dia a dia me exauriu. Cansei. Isso aqui parece inútil. Mas vou continu-ar.
Queria era explicar como vim parar aqui, senão fica parecendo que do nada a gente cai num hospício. É claro que não me lembro de muita coisa, tudo passou muito rápido para mim nos últimos meses.
A verdade é que minha “doença” (psicose maníaco depressiva - PMD) come-çou a se manifestar faz alguns anos, mas não dei muita importância, pelo menos no começo.
Tinha períodos em que ficava mais excitado, dormia pouco, emagrecia, anda-va e falava muito e não concretizava quase nada do que queria fazer (os médicos psiquiatras chamam isso de mania). Em outros períodos, esses mais longos, ficava apático, trancado no quarto, mais dormindo que lendo, não queria ver ninguém, me isolava do mundo (isso eles chamam de depressão).
Agora os médicos consideram que estou num período de mania. Parece que sou perigoso, um monstro, um assassino. O que me dá ódio é que aqui estou no meio de todo o tipo de gente.
Tem alguns que vêm pra cá porque são viciados em drogas, uns são tromba-dinhas, outros trombadões; outros que babam mesmo, que a gente vê na cara que nunca vão se livrar disso aqui, que já caíram na loucura; outros que têm cara de nor-mais, mas devem ter sérios problemas porque não falam coisa com coisa e outros que estão mais ou menos dentro de uma suposta normalidade, o que penso ser o meu caso.
Será que não é possível manter essas pessoas em hospitais separados, ou ao menos em alas separadas? Quando iam me internar, parece que eu ia para um hospi-tal aqui perto, o Cândido Ferreira, que é melhor do que aqui. Lá os pacientes pintam, ficam “soltos”, podem andar, acho que eles têm até livros pra ler.
Uma amiga minha fez um vídeo sobre um pintor de lá que se chama João Jor-dão, ele agora vende os quadros até no exterior. Uma vez fui numa festa lá, a gente ficava no meio de tudo quanto é “louco”, eles não faziam nada com a gente. Não me lembro o nome do cara que coordena esse projeto da pintura etc., mas parece que ele usa coisas que a Nise da Silveira escreveu. Coisas que ela propunha para reintegrar os pacientes numa vida “normal”. Uma outra experiência boa com essa parece que acontece em Santos.
Isso, acho, tá ficando meio confuso. Talvez depois arrume e escreva melhor. Que nada, vou é deixar assim mesmo. Tudo isso pra falar que aqui acho que está tudo errado. A gente fica o dia todo ocioso. Tipo aquele ditado: “cabeça vazia é mora-da do diabo”, algo mais ou menos assim. Além do mais, a gente fica a maior parte do tempo “trancado” em espaços muito pequenos, o que vai dando uma sensação maior de estar preso. Vai dando uma angústia enorme.
Agora acho estão diminuindo os meus remédios, ainda durmo bastante, mas acho que é mais por não ter o que fazer. Tenho ódio da psiquiatra que me atende, tem cara de merda. Fica escutando como se fosse uma privada. No fim da “consulta”, é só dar descarga e está pronta pro próximo paciente.
Isso aqui é muito semelhante a uma prisão, a gente fica fazendo nada e isso é o que deixa a gente pior ainda, queria ver se os médicos ficassem presos aqui uma semana que fosse, vendo tudo isso que a gente vê, queria ver se eles iam continuar normaizinhos como eles são. Eles não têm a mínima consciência do que a gente pas-sa. E parecem não estar nem um pouco interessados.
Depois a vaca da psiquiatra quer que eu me controle e responda as perguntas imbecis dela (como por exemplo, “como você está se sentindo? você acha que está melhor, mais controlado?”) de maneira natural. Mal sabe ela que muitos pacientes ficam falando como vão se portar na frente dela. Parece tudo teatro. Se eles fossem tão bons médicos assim, o B. não tinha saído daqui e depois tentado se matar. Eles não são deuses?
O que me emputece é que os enfermeiros e os auxiliares de enfermagem, que são os que têm maior clareza do estado como cada paciente está, não podem dar um pio. Eles dizem que toda uma comissão é que decide quem já pode ter alta, diminuir o medicamento etc. Banana para eles. Queria era cuspir na cara de cada um.
E os enfermeiros e auxiliares, coitados. Ficam tão neurotizados com os “che-fes”, que se comportam como se fossem comandantes de um batalhão. Comigo, por exemplo, que não gosto de chá, principalmente esse espúrio mate-leão, que eles ser-vem aqui (esse eu odeio), se ainda fosse um chá preto inglês (pobre também pode, por que não? além disso não é tão caro assim, já imaginou os internos do hospício todo tomando chá inglês e brioches? seria uma festa).
Bom, voltando, não gosto de chá, por isso pego meus remédios e vou tomar com água num bebedouro que tem bem perto, na cozinha mesmo, muitas vezes che-go a tomar os remédios na frente do enfermeiro para ele ver. Pois bem, não é que encanaram que eu não estava tomando os remédios, por isso sou obrigado a tomá-los amassados e diluídos em água. Querem saber o gosto? É super amargo. Horrível. Alguém quer provar pra ver como é?

27/2/2000
A minha estória pregressa? Acho que a partir de setembro ou outubro do ano passado comecei a ter uma atividade mental maior. A coisa é progressiva. A gente nem nota. Ou nota e finge que tudo está bem. Aliás, tudo está bem mesmo porque a gente se sente útil, depois de um período de apatia, ficar mais ligado ao mundo, à vi-da, é como renascer.
Esse ciclo de morte e renascimento acho que é o ponto central que impede, ou dificulta, as pessoas como eu de procurarem ajuda de médicos ou psicólogos. É como se a gente fosse outro, novo.
Daí o que se pensa é que tudo é passado, agora é nova vida e nunca mais vai acontecer. Comigo, pelo menos, nas vezes anteriores que procurei psiquiatras e psi-cólogos (nunca agüentei isso por muito tempo, máximo, acho que uns dois/três me-ses), penso que eles nunca foram sinceros/diretos comigo.
Eles deviam me dizer coisas do tipo: cara, você vai se foder se continuar as-sim, seu problema é seríssimo. Se você não se cuidar tudo vai num crescendo até a hora que você não vai mais suportar, ter o mínimo de controle. Tipo falar uma coisa que choque mesmo. Fernando Pessoa: “Se queres te matar, por que não te matas?” Talvez tenham me falado e eu nem ouvi.
Posso estar redondamente enganado, mas não acho que isso levaria as pes-soas a se matarem, por exemplo. Por isso, talvez, que eu esteja escrevendo tudo is-so. Se as pessoas lessem coisas como as que eu estou escrevendo, talvez optassem por algum tipo de tratamento. Melhor do que ficar internado em hospícios horríveis. Esse sim é o choque que pode levar pessoas a desistirem da vida, enlouquecerem de vez.
É mais ou menos uma coisa que li num autor francês, Pierre Solié, o livro acho que é O real e seu duplo. Ele diz que há duas maneiras de corte brusco com a reali-dade, ou o suicídio ou a loucura. O ambiente da loucura, o nojo disso tudo aqui, é mui-to mais perigoso do que ler sobre ele, ou sobre pessoas que são nossas iguais. Por que os médicos não pedem para as pessoas escreverem, contarem o que sentem e depois mostram para os outros pacientes? É claro que isso não seria a solução, mas talvez pudesse ajudar.
Eu conheço poucos livros assim. Talvez devesse procurar mais. Mas, mesmo sabendo que adoro ler, nenhum dos profissionais médicos que procurei nunca me indicou nenhum livro, nem falou sobre experiência semelhante. É como se fala das doenças em geral, uma medicina preventiva é muito mais eficaz que uma medicina curativa.
Não sei se estou falando um monte de abobrinhas. Mas, para mim, há uma via de mão única aqui, os psiquiatras/psicólogos pensam que só eles podem ensi-nar/ajudar/curar os pacientes.
Não sei que amiga minha que fazia o curso de psicologia, que dizia que algum professor falava que “o neurótico é igual a todo mundo e o psicótico é igual a ele mesmo”. De neurose e psicose todo mundo tem um pouco, parodiando o “De médico e louco todo mundo tem um pouco”. Não acredito que haja um homem no mundo que não tenha, um dia, vivido um problema semelhante ao meu, é claro que em graus variados.
Então, porque não tratar a sociedade inteira e principalmente os profissionais da saúde? Acho que não há esse movimento pro outro, há esse atitude imbecil de tratar o outro com distanciamento, como os psicanalistas lacanianos e freudianos que têm aquela sala toda branca sem nada na parede.
Uma estória que aconteceu comigo.
Um dia, fiquei esperando quase uma hora e meia para ser atendido numa con-sulta com hora marcada (vocês acham isso normal?). Se ainda fosse um hospital pú-blico, mas era consulta particular. O cara, depois que entrei na sala (exausto e com raiva), ficou me olhando com aquela cara de muro, sem dizer palavra.
Entreguei a ele alguma coisa que eu tinha escrito sobre mim mesmo, como achava que eu era, meus defeitos, dúvidas, medos etc. É claro que ele nunca me fa-lou nada sobre aquilo tudo, nunca me deu algum retorno, não emitiu nenhuma opini-ão.
Bom, mas voltando, o cara ficou mudo e eu disse a ele, num tom sério, e de-pois sarcástico mesmo, que se eu pulasse lá do nono andar ele ia ficar com aquela mesma cara ou se ele ia ter alguma reação, porque ele nunca demonstrava ter ne-nhum sentimento. Parecia uma estátua.
Para mim, esse é o maior problema, o de encontrar gente que seja de carne e osso como a gente. Não estou falando que a pessoa tenha que se descabelar, chorar, gritar, sentir o que a gente sente. Queria que ao menos houvesse uma manifestação de que algum sangue corre na veia deles.
Finalizando, é claro que as pessoas têm que procurar os médicos, porque po-dem se foder se não fizerem isso, mas os médicos também devem mudar sua atitude diante dos doentes, senão o tratamento acaba se dificultando. Eu falo tudo isso por-que estou com raiva, mas sei que a única forma é tomar remédios etc. Não quero nunca mais voltar para um hospício.
Começo de novo.
A partir de setembro do ano passado, estava na casa de H, comecei a dormir cada vez mais tarde e depois, com o tempo, acordava cada vez mais cedo, até o momento em que fui quase que rodando o dia sem dormir.
Não tomava nada pra dormir, falava de ir ao médico mas fui adiando. Ficava a noite toda fazendo coisas, no começo lembro que ainda lia, mas aos poucos fui per-dendo a concentração e ficava fazendo coisas na casa. Fazia a comida para o dia seguinte, inventava sobremesas, coisas para o café da manhã. Enfim, lembro que ficava basicamente cozinhando, limpando e vendo televisão. Pura neurose.
É claro que isso não aconteceu de um dia para o outro, no começo não me lembro de ter tanta atividade, ficava chateado de não conseguir dormir mas achava que era porque estava preocupado com as coisas. A noite toda pensava, pensava...
Queria resolver os problemas, buscando possibilidades de solução, às vezes me entediava, ficava puto da vida comigo mesmo, tinha consciência que estava per-dendo tempo, porque não dormia e ficava com sono o dia todo e não conseguia ler e escrever.
Às vezes me vinha em mente quanto tempo eu tinha perdido na minha vida, que estava ficando velho e ainda dependendo dos meus pais, morando com eles etc. Essas coisas que até hoje eu penso. Mas ao mesmo tempo sempre vinha uma súbita certeza de que tudo ia mudar, de que eu ia conseguir ter êxito na minha vida.
Para mim, isso é um problema não resolvido, porque tenho ódio só de pensar que um dia vou ter que entrar em algum esquema de trabalho. Isso de trabalhar das 8 às 18 horas, horário marcado, chefe, fazer coisas que não me servem de nada.

28/2/2000
Por que eu fui nascer pobre? Ao mesmo tempo sei que muitas pessoas com capacidade intelectual muito acima da minha estão neste esquema que acabei de falar.
É, gente, é preguiça o que eu tenho mesmo, e daí?
Incapacidade de me adaptar, medo de conviver com os outros, medo de ter de agüentar a infelicidade de trabalhos burocráticos que enchem a gente de uma sensa-ção de vazio absoluto. Sei disso porque já fiz coisas assim e era isso o que eu sentia.
O dia a dia já é tão repetitivo, ainda mais com um trabalho desses. Deus me livre! Espero que consiga fazer algo diferente. Já tentei algumas vezes trabalhar em empresas, bancos essas coisas (se bem que quando eu era adolescente); depois tentei dar aulas, mas percebi que sou um péssimo professor (acho que só agora é que estou tenho coragem de admitir isso), embora tenha feito o curso de Letras.
Falando assim, parece que o meu sonho é como aquele de todo mundo, ga-nhar na loteria e ficar de perna para o ar, “matando tempo”, o resto da minha vida. É claro que todo mundo quer ter uma vida boa, negar isso é uma besteira imensa. Mas ter dinheiro para não fazer nada é restringir muito o significado da existência. Estou com um pouco de dor de cabeça, calor e coisas afins.
Contar sobre si mesmo é a pior coisa do mundo, a gente sempre mente um pouco, ou bastante, omite coisas, é sempre um tentar ser mais verdadeiro possível.
Quando eu tinha uns quinze anos, lembrei disso agora, aconteceu uma coisa que eu nunca me esqueço. Era tempo das minhas férias de fim de ano. Sempre, nes-se período, ia viajar para o campo, no Paraná, para o sítio de meus avós maternos. Nessa época os meus avós já tinham vindo morar em Campinas, e um dos filhos de-les é que era dono do sítio.
Foi minha primeira viagem sozinho e logo de cara parecia que ia dar algo erra-do. Primeiro meus dois dentes da frente começaram a doer e a gengiva inflamou. Es-ses dentes eu quebrei aos dez anos. Jogando “queimada” na rua, escorreguei num bagaço de laranja e pum, bati a boca no asfalto, resultado: puro sangue, não o cavalo. Agora, com a gengiva inflamada, fui ao dentista que queria fazer tratamento de canal, mas a viagem era já naquela noite. Ele me receitou um antibiótico e pronto.
A dor que eu sentia me fazia lembrar daquela outra dor, quando do acidente, que me fez quebrar esses dois dentes e ficar horrível, a imagem no espelho, o sangue escorrendo, a dor, o pânico, os dentes quebrados, o medo de que os outros me vis-sem assim.
O antibiótico fez efeito, mas era preciso tomá-lo acho que de oito em oito ho-ras. A viagem era longa (umas 17 horas) e teve uma hora que eu dormi. Não é que algum tempo depois, de repente, me cai bem na cabeça uma dessas garrafas enor-mes que as pessoas usam para colocar água ou suco, sei lá? A dor foi lancinante, fisgou lá bem fundo.
As pessoas, é claro, riam e riam, sem ao menos saber da dor que eu sentia. A mulher, a dona da garrafa, se desculpou, mas acho que nem dei bola. Tomei logo um comprimido, mas a dor demorou para passar. Sei que a viagem toda eu não consegui dormir mais, com medo de que alguma outra tragédia acontecesse. Imagina se aque-la garrafa enorme caísse de novo na minha cabeça?
No mais, cheguei à última cidadezinha antes do sítio, depois o caminho ficava pior e a maior parte do trajeto era de estrada de terra. A chuva começou, foi ficando cada vez mais forte. Tomei o ônibus, desci onde tinha que descer e andei, os cerca de 4 a 5 quilômetros até o meu destino, em baixo de chuva e em cima de barro.
O tempo que passei no sítio foi bom e fiz o que sempre costumava fazer desde a minha infância, brinquei como uma criança na água, andei pelas plantações, comi pêssego e melancia, vi os vaga-lumes à noite, a barulhada dos bichos, dos sapos etc.
É triste lembrar de um período assim tão livre, e mais triste eu vou ficando quando eu me lembro do dia.
Meus tios e primos não estavam em casa, voltei depois de uma visita a outro tio meu que morava perto. Não me lembrei de nada, só fui abrindo a porta da cozinha que não estava trancada, é claro. No sítio as pessoas não costumam trancar as por-tas, pelo menos não costumavam, acho.
Só fui abrindo a porta da cozinha, e nisso saíram os três pintinhos. Por descui-do, por um susto repentino, acabei pisando num deles. Ele ficou estirado no chão, o coitadinho, as vísceras para fora, que dor, meu deus.
Comecei a chorar desesperadamente, não sabia o que fazer. Ele piava doído, depois abafado, depois mais alto. Que dor, meu deus. Num primeiro momento pensei que podia salvá-lo, enrolei ele num pano, mas não conseguia nem olhar direito para ele. Quanto enfim olhei, vi que o destino dele era a morte.
Mas que morte seria? Eu ia conseguir matá-lo? Pisaria nele até que morresse? Daria uma paulada nele? O tempo passava e eu não conseguia fazer nada. O piado diminuía, quase acabava, aumentava de novo forte, longo. Os outros irmãos dele con-tinuavam correndo de lá para cá como se nada tivesse acontecido, como se eles não ouvissem aqueles gemidos.
Acho que nesse dia, sem saber, compreendi o que é a agonia. Essa luta entre a vida e a morte. Não agüentando mais a situação, corri para longe da casa, fui até uma bica que ficava em frente, logo depois um terreno alagadiço, com taboais, entrei nele e fui andando e enfiando meu pé na lama.
E como o piado ia diminuindo, resolvi, em vez de enterrá-lo na lama, que seria tarefa difícil para carrasco aprendiz, resolvi jogá-lo no ar como se ele voasse o último vôo da morte. Voltei, lavei meus pés, minha cara, as mãos, o corpo todo na água da bica. Água que corre pura e que nos limpa.
Depois busquei saber onde estavam os outros pintinhos e prendi-os. Sentei enfim, fora da casa, fora de mim e chorei grosso, fundo, interminável. Solucei bem alto. Mas mesmo assim, ao longe, ainda escutava alguns piados que por fim se aca-baram.
Dei graças a deus. E agora penso: que destino o dos seres humanos. Esses pintinhos foram salvos da morte pela minha prima T, pois eles ficaram sem mãe, e ela, muito da maternal, começou a cuidar deles.
Ainda havia outro problema: como contar a T que eu tinha matado um dos seus queridos pintinhos? Contei logo depois que ela chegou e notou a falta de um deles; eu poderia inventar uma mentira, mas não tinha cabeça para isso. Ela se entris-teceu, ralhou comigo, e de certo viu em mim um inimigo mais perigoso que uma rapo-sa. É claro que eu tinha culpa.
Acabo de contar essa estória porque fui para a casa de meus pais este final de semana, de licença concedida pelos médicos. Minha prima, que hoje mora em Mato Grosso, estava lá. Não é que ela veio me dizer do pintinho, afirmando que eu nem devia mais me lembrar dele? Há certas coisas, T, que mesmo que a gente queira, ficam grudadas na nossa lembrança e são mais reais do que muitas outras do nosso presente.
Da minha primeira viagem sozinho ficou muito pouca coisa. Uma certa vontade de ganhar o mundo, pois afinal de contas me sentia grande, responsável, confiante.
Ainda sei o gosto de um pêssego apanhado no pé, da amora, da água fria da-queles córregos, da bica. Água minando da mina e tomando tudo.
Ainda sei o som do porco, da vaca, das galinhas d’angola e das maritacas. Os grilos, os sapos, o vaga-lume no escuro.
Ainda sei, mais que tudo, antes de tudo, um piado fundo, sem volta, colado aos meu dedos.

29/2/2000
Devo continuar a estória de como vim parar aqui no hospício, hospital psiquiá-trico etc.
Estando desse jeito que eu contei, muito excitado e dormindo pouco, não con-seguia me concentrar para fazer nenhum trabalho intelectual.
Lembro vagamente que H e JL me falavam para ler algum livro do Freud, acho que com algum caso que de alguma forma eles pensavam que tinha a ver com o meu estado. Não me lembro direito o que falava, acho que devia falar rápido demais, e não deixava eles falarem.
Estou dizendo isso porque uma vez estive em São Paulo e jantei com FW e DG, que é um poeta, depois de alguma palestra a obra da Clarice Lispector, eu acho que foi isso, ou alguma coisa parecida.
Bom, o caso é que depois DG escreveu uma carta para H, dizendo eu tava parecendo uma pilha, ou um rádio, que não deixava ninguém falar, que falava em demasia. Maldade dele, né, gente. Mas nem dei muita bola, na época. Achei só que ele poderia ter dito diretamente a mim. Isso não importa. Quando ele soube que eu soube, se desculpou, me mandou até um livro de presente. Pode? Às vezes, escorre veneno por nossas bocas. Maldade humana. Isso não importa mais.
Devia estar falando muito nesta época de agora também. Lembro que ficava ouvindo as mesmas músicas sem parar. Que uma vez encanei que ia fazer como que um jardim japonês, peguei telhas, bambus, uns vidros etc. e fui fazendo um aquário, umas esculturas com barro (que claro iam se deteriorar todas). Tudo sem muita orga-nização, eu nem perguntava para H se podia fazer aquelas coisas na casa dela.
Lembro também de uma mania excessiva de limpeza. Depois do almoço, que-ria ver todas as louças lavadas, ficava dando banho nos cachorros toda hora, limpan-do e organizando os livros etc. Acho que devia fazer um montão de coisas que aca-bavam desorganizando em vez de organizar. Parece que virei uma “zita” como a H costuma sempre brincar.
Acho que fazia essas coisas exteriores para deixar de pensar, ver se chegava logo o dia seguinte. Lembro agora que vinha como que um medo de me deitar, essa coisa de ter que acordar no dia seguinte, não sei, ou como uma criança que fica lu-tando contra o sono. Às vezes, acho que me vinha uma compreensão súbita, como um flash de que algo estava errado, ou uma vontade de que o mundo fosse de outra forma. O que eu sei é que nessa fase a percepção do mundo e de si mesmo vai se refinando, ficando mais sutil, não sei como explicar.
Sei que mesmo não tendo consciência de que estamos fazendo algo que não é bom para o corpo nem para a mente, a gente fica muito mais sensível. Essa sensibi-lidade é boa, nos faz sentir bem, mesmo que a gente chore, não consigo explicar.
Eu, pelo menos, fico mais sensível a qualquer coisa, mesmo que pequena (pa-ra mim isso é verdade desde que eu era criança). É como se houvesse uma sintonia fina entre a gente e o mundo, as pessoas, os animais e mesmo as coisas.
Por isso é que nessa fase choro e tenho explosões de ira por coisas muito pe-quenas. E o problema é que chega uma hora que não temos nenhum controle, e qualquer coisa é motivo para briga. Eu devia falar muitas coisas super ofensivas, mas no momento seguinte já tinha esquecido.
Tanto que quando via a pessoa de novo, me comportava como se não tivesse acontecido nada. Nunca pensava que a pessoa tinha ficado puta da vida comigo. Pa-ra as pessoas isso deve parecer falsidade da gente, dissimulação, não sei, isso eu teria que perguntar para elas.
A verdade é que há um certo incômodo o tempo todo, uma fragilidade que a pessoa tenha compensar se mostrando ágil, em super atividade. Sei lá. Deve ser mui-to chato para quem está perto. Mas por que eles não falam nada? Eles têm medo do quê? Devem falar e a gente se esquece no momento seguinte.
Lembro que fiz um altares nas lareiras, queria enfeitar a casa, queria que tudo ficasse bonito. Queria que H ficasse alegre, que ela comesse bem e bastante, coisa que ela faz tão pouco, tipo “come como um passarinho” etc.
Ficava as noites assim, em branco. Ouvia música. Lembro que chorava. Bebia um pouco. Ficava sempre super sensibilizado com as coisas. Quando vou ficando neste estado, choro muito (já disse isso? não tem importância) e rio muito também.
Posso ir de um extremo ao outro em segundos. Brinco bastante, fico muito mais palhaço. É como se eu fosse um outro eu, que considero melhor no momento em que estou vivendo tudo aquilo.
Acontece que o que sinto é que num primeiro momento as pessoas gostam se divertem, riem, saem também um pouco delas mesmas. Principalmente meus amigos mais certinhos, mais compenetrados num dia a dia maçante de trabalho diário etc.
Mas depois, acho que acabo falando coisas demais, falando pelos cotovelos. Sem papas na língua, sem um senso crítico de até onde posso falar. Choco, ofendo, parece que acabo desestruturando as pessoas porque devo falar coisas para elas que realmente têm algo a ver, toca bem em suas fraquezas.
Falando assim, pode parecer que é uma coisa consciente, premeditada. Tipo, agora vou alfinetar ali, bem naquela ferida ainda em carne viva. Uma coisa meio sádi-ca. Mas não é isso. É incontrolável, tudo passa na cabeça sem nenhuma CENSURA. A gente perde todo o censo das regras sociais. Afinal de contas, porque é que ofende-mos as pessoas que amamos? Seria uma forma de se auto- destruir?
Engraçado, não entendo porque as pessoas que são mais íntimas minhas não me falam essas coisas. Tipo: fiquei ofendido etc. e tal. Ou me falam e eu acabo es-quecendo no momento seguinte. Não sei. O que sei é que fico como uma criança que não tem a noção das regras sociais ainda bem formadas em sua cabeça (já falei isso, falo de novo, é bom repetir pra ver se nunca mais esqueço).
A impressão que deve ficar é de que eu sou uma mala sem alça. Daí, com o tempo, qualquer coisa que eu diga acaba sendo interpretada de outra maneira. Por isso surgem as brigas. Não sei se só por isso, devo falar coisas horríveis também, mas é mais ou menos aquele papo de “gato escaldado tem medo de água fria”.
As pessoas passam a me ver como um inimigo. E já vêm com pedras na mão. Acontece que depois elas não contam, umas as outras, das pedras atiradas, só das recebidas, o que é normal nas mentes humanas. Esse “complexo” Cinderela e Madas-tra má. No entanto, eu estou mais para aquela rainha do Alice do país das maravilhas, que diz: “Cortem a cabeça dele/a”, e depois nada acontece.

1/3/2000
Jogo álcool na ferida da pessoas (que imagem horrível) e depois fico asso-prando, sofro também com a pessoa. Aí jogo álcool na minha ferida. Coisa mais doida isso. A verdade é que tenho mania de querer cuidar da vida das pessoas, enquanto a minha continua uma bosta. Sofro muito pelo outro, rezo muito pelo outro.
Falando desse jeito até parece que sou um santo. Coitadinho de mim, canalha dos outros. Que besteira.
Bom, voltando. Queria era entender um pouco. Acho que pelo fato de falar coi-sas que chocam, ou que às vezes são até verdades que a pessoa não quer enxergar, isso acaba criando uma barreira entre mim e as pessoas. Essa falta de censura é péssima.
As pessoas mais próximas, com quem supostamente poderia ser mais verda-deiro (normalmente sou bastante claro, direto, aberto com meus amigos mais íntimos), acabam ficando ofendidas comigo.
E amigo, na verdade a gente sabe, gosta um pouco de aumentar as coisas também. É como um telefone sem fio, você fala alguma coisa chega no fim da linha completamente distorcida. Isso, eu acho, acaba gerando um ódio das pessoas por mim.
É claro que também não sou nenhum santo, acabo cobrando coisas das pes-soas que elas não devem entender direito. Fico, no fundo, querendo que elas me aju-dem a concretizar as minhas loucuras. A compartilhar da minha irresponsabilidade.
Como, por exemplo, lembro de ter ficado pedindo grana para a R, não me lem-bro mais se pedi para a E e para P também. Sei que com R insisti, liguei para ela vá-rias vezes. Mas isso foi muito mais pra frente, tipo janeiro de 2000. Parece que meu tom de voz se altera, fico puto quando sou contrariado.
Será que eu fico descontrolado demais? Que pergunta!!! Pensando em tudo, acho que sim.
Isso tudo parece uma justificativa meio falha. A verdade é que não entendo. Devia mesmo precisar de ajuda. Mas não gostaria que tivesse sido de uma maneira tão brutal como foi. Gostaria que tudo tivesse transcorrido mais calmamente, mas pa-rece que o que aconteceu foi isso que estou vivendo. Gostaria, gostaria.... Rárárá.
Espero acordar logo desse pesadelo. Espero que amanhã tudo isso seja como aquela estória do pintinho, que me faça sentir coisas desagradáveis lá dentro, que me faça chorar. Que seja passado, ainda que mais real do que muita coisa que estiver acontecendo no meu presente. Espero, espero... Rárárá. (isso é todo mundo rindo de mim e eu rindo de mim mesmo)
Bom, mas vamos voltar para a casa de H., em setembro/outubro do ano pas-sado. (Acho que não vou acabar isso aqui nunca) Sei que me lembro de ficar exausto, mas tomar café de manhã com H. Fazer uma mesa linda para a gente encher os o-lhos. Nesse estado de excitação não me lembro direito, mas acho que não comia muito. Ou comia? Sei que fui emagrecendo de um modo vertiginoso. Minhas calças todas estavam caindo, tanto que tinha que amarrá-las com um cordãozinho de couro que E. me deu. Ainda bem que tinha o cordão, senão ia ficar sem calças. A verdade é que, embora muito magro, eu me sentia muito bem, tipo alto astral.
Daqui para frente as coisas começam a se complicar cada vez mais num cres-cendo, como uma BOLA DE NEVE me envolvendo progressivamente sem eu me dar conta disso. Acho que final de novembro, ou já dezembro, não sei bem, fui a São Pau-lo para cuidar e um assunto de grana pendente de H. E também para ir a um psiquia-tra, o doutor G. (que, diga-se de passagem, foi super anti-ético comigo).
Sei que chegando a São Paulo, fiz o que tinha que fazer, ganhei uma graninha com isso, e esqueci momentaneamente o médico. Primeiro me deu um certo cansaço, devo ter ficado na casa de E. sem fazer nada. Talvez tenha tido um pouco de vontade de ficar sozinho.
Foi então que começaram a surgir idéias mirabolantes em minha cabeça. A vontade de montar uma espécie de sebo de livros. Fiquei tentando escrever uma peça de teatro, Eu sou o senhor do tempo, para o ZC fazer (isso é o que eu queria, nem falei com ele), que foi ficando cada vez mais interminável. Uma idéia gerava outra, e assim por diante.
Não cheguei a escrever quase nada. Mas as idéias jorravam intermináveis na minha cabeça. Anotei um montão de coisas. Rasguei muitas depois. Mas me lembro de tudo o que eu queria fazer. Dava uma coisa tipo uma Odisséia, do Homero; um Ulisses, do James Joyce. Simples, não? Nada megalômano!!!
Contava a estória da peça para E., no começo ela não disse nada, ficou muda, como é comum a ela. Ela é mais para a calada, para a calma. Até o dia, ela já devia estar cheia de mim, que ela disse não via nenhuma novidade naquilo e achava a peça uma coisa já vista, gasta, sem graça, sem originalidade alguma. Uma bela bosta, para resumir o que ela queria ter dito, mas não disse textualmente. Ora, pois pois!
É, gente, mas aí ela não estava nada da calada, da calma não, viu? Soltou mais cachorros em cima de mim do que “os cem dálmatas”. De onde é que vinha tan-to cachorro assim? Gente, como a gente é falso um com o outro, não é? Eu, nem aí com ela, continuava a fazer a peça, como envolto numa suave brisa de música. Es-crevi uma espécie de prefácio louquíssimo, que nem sei mais onde está, onde foi pa-rar etc.
Contando desse modo parece que essa fase que vivi, bem como outros mo-mentos anteriores de excitação descontrolada (mania, como chamam os médicos) são altamente improdutivos. Mas não é bem assim. Consegui escrever coisas, umas melhores, outras piores.
Depois vou copiar um poema (que está na minha casa) que escrevi num mo-mento de grande excitação também, acho que em 98. Estava em Vitória, no Espírito Santo. O poema me veio numa madrugada, voltando de uma festa, com duas amigas minhas. Acho o poema muito bom.
Aí está ele:

As geografias me cansam,
Roma. Paris. Barcelona.
O câncer dos dias.
Todas as fomes do corpo
em fila indiana
até o nunca.

As geografias me cansam.
Nem mesmo A Sagrada
Família, de Gaudi
(a alma saindo pela garganta),
é suficiente o bastante
para acabar com
a tediosa monotonia
de Barcelona.

Estar vendo o mundo
na contracorrente
(numa Veraneio de dois lugares)

As luzes. Um cachorro
perdido. O vento esticado
da meia-noite às cinco.

Depois uma esquina.
Viro à direita.
Quatro pessoas.
De mãos dadas.
Dois casais. Penso.
Depois a lua.
Uma árvore que passa.
Passa e é sempre
a mesma multiplicada
em espécie e matéria.

As geografias me cansam.

Depois uma esquina
a mais. Uma outra
e enfim o mar.
O mar nesse insuportável
calor de um sábado
na cidade de Vitória,
Espírito Santo,
no Brasil.

Depois o mar no
movimento eterno
do vai e vem da água...

E nem há tempo
mais para o teu vício
do tempo.
Tudo pingando.
Coqueiros. Luzes.
Sol e lua
se misturando.

As geografias me cansam.
Novembros.
Outubros.
Dezembros.
Tudo é. E passa
sem que eu consiga
tocar nessa
insensata e sedosa
pele do tempo.

Depois. O respirar
mais fundo.

As geografias me cansam.
O ontem. O sempre.
O atum. O ogro. A ostra.
O nunca. O ali. O acolá.
A náusea
devastadora e asfixiante
do tempo e do espaço.

A textura do azul.
O compasso da música.

O idílio sonhado
desses amores apodrecidos
antes de chegarem
à minha boca.

Tudo isso me cansa.
O vômito. O tédio dos
dias. O acordar sempre
do sono. No mar.
De novo.
Nesse movimento
cíclico
de água
de pedra
de areia
de vapor
e o medo
de ser outra coisa
que não o informe.

As geografias me cansam.
Embora haja os coelhos
(num nublado dia de inverno)
correndo no aeroporto
Charles de Gaulle.

Depois.
Depois a guilhotina
da morte te esperando
estreita e cortante
na próxima esquina.

As geografias me cansam.
E é por isso que sempre
mudo.

Mudo e me ausento.

2/3/2000
E me perguntava se eu não ia ao médico, eu me esquivava. Até o dia em que fui. Ele, doutor G, vendo meu estado de excitação, agora é que se esquivou de mim. Disse que não podia me tratar mais (eu já tinha me consultado com ele anteriormen-te), porque o meu caso exigia uma dosagem de medicamentos muito precisa. Mentiri-nha dele, né. Tadinho!
Indicou-me outro médico, um japonês, me deu telefone e tudo. Acontece que esse japonês era uma espécie de fantasma, ou invenção de G. Sei que o telefone que me foi dado não era dele. Liguei de novo para o consultório de G e nada de resposta. Nada de telefone do japonês da “carochinha”. Procurei na lista telefônica, nas infor-mações da Telesp etc. Nada. Sei que ao menos mais uma vez tentei conseguir o tele-fone com G. Nada.
Como eu já estava entrando num estado de descontrole maior, fui desistindo disso de psiquiatra. Talvez fosse um recado para eu não procurar ninguém. Mais tar-de, acho que umas três semanas depois, me consultei com um outro médico, indicado por O., bem velhinho e simpaticíssimo. Conversamos, ele foi muito atencioso, me re-ceitou Prozac acho, mas não comprei e não voltei mais a ele. Eu já estava muito diluí-do no mundo.
E ficou chocada com a atitude do médico, o doutor G. Primeiro pensou que fosse mentira minha, que eu não tinha me consultado nada. Depois acho que aceitou que eu estava falando a verdade, embora já estivesse meio “louco”. Deve ter sido angustiante para ela ter convivido comigo nessa época.
Percebia uma certa irritação progressiva em E, mas para mim parecia que a-quilo não tinha a ver comigo, mas com os problemas dela mesma. Isso porque nos primeiros dias que estivemos juntos ela já estava bem triste e chateada, e depois da minha chegada ela ficou mais alegrinha. Para depois ficar mais tristinha de novo. Coi-sas da vida, infelizmente.
Lembro que a gente saía para comer à noite, andava um pouco, conversava, lia coisas juntos. Coisa que E. adora fazer, ficar lendo em voz alta para os outros. Mais ou menos em 97 eu ia muito a São Paulo, E e eu chegamos a passar madrugadas, lendo e conversando. Penso que ela devia gostar desses momentos.
O que eu quero dizer é que mesmo estando neste estado de excitação mental muito grande, isso não significa que o tempo todo eu tenha sido desagradável para os outros. Pelo menos penso que não. Acredito que conseguia ser uma boa companhia também, pelo menos em alguns momentos.
Não é que tudo seja uma loucura desenfreada, a gente não fica babando pelos cantos. Não dizendo coisa com coisa. Acho que é uma fase em que tudo vem à tona, eu lembrava muito de coisas passadas, e isso me emocionava muito. É como se o passado, o presente e o futuro se fundissem num eterno agora.
Por isso a idéia de escrever a peça Eu sou o senhor do tempo. Daí a sensação de largueza, de amplitude que a gente tem. E também a sensação de poder fazer tu-do. É como se estivéssemos acima do tempo, como se fôssemos imortais.
Acho que o tempo em nossa mente é mesmo assim circular (deve haver mui-tos livros que falem sobre isso). O que acontece no caso da psicose maníaco-depressiva, a PMD, é uma invasão do consciente pelo inconsciente. E ser invadido, ter a mente invadida, pelo passado traz tanto as coisas alegres como as tristes que vive-mos. Isso é o que faz a sensibilidade ficar maior, isso é o que leva (acho eu) a um descontrole da pessoa que sente isso. Difícil tentar explicar tudo isso.

3/3/2000
As pessoas que estão vendo de fora se assustam, é claro, não sabem como podem ajudar. Mas acho que a medicina avançou muito pouco. Não é só dando dro-gas (medicamentos) e mais drogas para a gente isso vai se resolver. Que merda é isso, que não se pode resolver de outras formas?
O que mais me entristece é que não sei se algum dia vou voltar as conversar com as pessoas com as quais me indispus. Sei que leva tempo para as pessoas aca-barem com as mágoas. Sei que muitas demoram anos. Depois, depois não sei se valerá mais a pena. Porque sei que essas pessoas sempre vão ficar com um pé atrás comigo. As coisas nunca voltam a ser mais as mesmas.
As pessoas simplesmente desaparecem, eu nem pergunto para meu pais, mas acho que ninguém nem liga para saber como eu estou. Piedade de mim mesmo? Sim, se eu não tiver, quem vai ter? Às vezes fico tendo idéia de que todos dizem que vim parar aqui merecidamente. Acho que riem, que acham um bom castigo, “tá vendo, ele teve o que merecia, encheu o nosso saco, mas agora tá pagando” etc. Besteira isso.
Não sei se até hoje tive algum amigo realmente. Minha família foi a única a agüentar a barra. A gente se sente desamparado, totalmente desamparado, porque fica sabendo (que embora insuportável às vezes), as pessoas da família são as úni-cas com quem realmente se pode contar. À vezes, no caso de algumas pessoas que estão aqui comigo no hospício, nem isso.
Ao mesmo tempo sei que as pessoas têm suas próprias vidas para cuidar. Suas próprias neuras. Penso, no entanto, que é muito gostoso estar com alguém que nunca te cria problemas, que só te traz alegria etc. Os relacionamentos são sempre egoístas demais, e eu ainda não aprendi isso.
Tenho a mania de ser muito prestativo, isso não é bom. “Ele é legal, gente! Legal!”. Sei que estive com alguns amigos em momentos cruciais de suas vidas (isso aqui é um desabafo), coisa que muito pouca gente faz, e agora estou me sentindo traído.
Mas que coisa essa, para quê serve ficar desfiando as mágoas? A gente é como é, e amizade não escolhe ninguém. E parece que isso é inerente ao ser huma-no. Estar sempre próximo de alguém que possa cuidar de você, te fazer bem, te car-regar no colo (essas coisas são breguíssimas).
A maioria das pessoas têm mesmo é necessidade de carinho, não suportam os problemas, nunca querem ir em direção ao outro, ainda mais se o outro for “louco”. O que incomoda, a gente simplesmente “corta” como se fosse um apêndice. Talvez nem eu queira mais conversar com ninguém.
O que eu queria dizer é que acho que as pessoas deviam procurar ver as rela-ções mais como coisas contínuas e não momentâneas, principalmente quando você conhece a outra pessoa há um bom tempo. Quanto de bom? Que momentos? Que problemas? Que infelicidades? O que eu gosto e o que eu não gosto nessa pessoa? E coisas afins.
Além do mais, mesmo que tudo esteja bem, tem gente que nunca me procura. A E., por exemplo, pode ficar uns vinte anos sem procurar a gente, se a gente não liga. Aí ela liga, e alguém do outro lado da linha: “Não tá mais não, foi pro Ceilão, te deixou um beijão...” ou “Não dá pra deixar recado, ele morreu de enfado.” Daí os ou-tros amigos dizem: “Deixa pra lá, ela é assim mesmo...” E eu, eu não posso ser assim como sou?
Gente! Isso aqui tá parecendo mais um rosário de mágoas, de lágrimas. Que coisa mais idiota. Mas fica aí, fica o que foi escrito. Não quero me fazer censura.
Bom, isso foi um desabafo. Talvez eu me porte da mesma maneira que as pessoas que estou malhando como judas aqui. Devo ser também um grande filho-da-puta como os outros.
Depois dessa longa digressão volto a contar. Agora vou tentar ser mais direto. Contar tudo que me lembro mais ordenadamente. Vamos ver se consigo.
Bom, estava eu em casa de E. Todas aquelas coisas lá de trás que eu contei tinham acontecido. Quando de repente. De repente. (Tipo Gil Gomes, aquele radialista policial).
Decidi ganhar a rua. Devia ser próximo do Natal. Só me lembro que havia mui-ta luz à noite. Por algum motivo pensei em comprar alguma comida e dar para os mendigos. Não que tivesse me invadido esse espírito natalino, tipo bom cristão.
Muitas vezes, na minha vida, fiz isso de dar comida, dinheiro, conversar um pouco com os mendigos. Acho que é um modo da gente sentir menos culpa. Eles, muito dos espertos também, diga-se de passagem, sabem ver no olho da gente aque-les que têm uma compaixão maior.
Não que a compaixão seja um mérito meu. É um fato. É algo que me atinge, que penetra mais em umas pessoas do que em outras. É claro que muitas também podem forjar a compaixão como modo de se auto-redimir etc. Mas claro que vou dizer que esse não é o meu caso.
O fato é que decidi fazer isso. Passava nos supermercados, comprava um pouco de comida e andava até encontrar um mendigo. Algumas poucas vezes já es-tava sem comida, corria ao supermercado, mas já tinha perdido o andarilho. Muitos deles não ficam parados muito tempo no mesmo lugar. Essa vida cigana.
Talvez daqui há algum tempo, todo mundo vire nômade. Se continuar aumen-tando a pobreza, eu, você, todo mundo vai virar mendigo. Daí, todo mundo vai ter que ficar andando, andando feito um louco para conseguir fazer uma boquinha...
Como eu não tinha quase dinheiro, comecei a vender uns livros que tinha le-vado para São Paulo e com essa grana é que fazia minha andança. Aos poucos isso foi me tomando de tal forma que andava a noite toda dando comida, ou apenas con-versando mesmo. Inventei de catar lixo, coisas recicláveis que ia transformando em pequenos “bibelôs” e dava para as pessoas da rua. Gostava era de fazer arranjos com flores já caídas, folhagens etc. Como esta era a época de Natal, havia uma clima de festa e também muito desperdício de coisas. Milhares de papéis lindos jogados no lixo.
Tem cada coisa. Imagina que nas minhas andanças encontrei uma moça que catava lixo também para fazer coisas que depois ela vendia e ganhava uma grana. Sabe que ela achou um quadro da Maria Bonomi no lixo? Eu não acreditei, mas ela me mostrou. Depois dizem que pobre é que não tem cultura, é mal informado. É uma falta de cultura geral, um desperdício geral.
Eu fazia coisas incríveis (pelo menos eu achava) com o lixo e ia dando para as pessoas. Às vezes, ficava cansado, parava, sentava na calçada e ficava lá fazendo coisas. Às vezes era tanto lixo que eu tinha, que deixava os arranjos enfeitando o lu-gar onde eu estava mesmo. Seguia principalmente pela rua Augusta e arredores, do centro velho até a região dos Jardins.
Ainda no dia de Natal, acho eu ainda não estava em frenesi com essa coisa, pois me lembro que passei sozinho na casa de E. Li, escrevi algumas coisas, ou tentei escrever. Fiquei pensando, olhando às vezes o movimento da rua, os carros, as pes-soas, as luzes. Passei, assim, a noite toda. Acendi todas as velas da casa e deixei queimando, as luzes apagadas. Aí um sintoma de que eu já não estava mesmo muito bem. Principalmente porque eram velas caras, que ela tinha ganhado de presente etc. e tal.
Incenso. Velas. Queria tanto que meu mundo fosse outro. Fiquei pensando na minha vida toda. Na inutilidade que eu era. Trinta anos jogados fora, desperdiçados. Coisas como essa são muito comuns em minha cabeça. É uma incógnita da culpa. Ao mesmo tempo que quero ter uma vida livre, sinto culpa.
Logo depois do Natal, E se encheu de mim. Cansou. Lembro que eu estava trazendo lixo para casa, e ela com um desejo de ver tudo limpo. Além disso tinha a estória das velas que tinham deixado ela chateadíssima. Ela disse que era melhor eu ir embora, voltar para Campinas, me tratar, blá, blá, blá. Não me lembro com que pa-lavras, se foi áspera ou não.
Sei que me deu uma bolsa enorme onde fui colocando minhas roupas, uma porção de livros, livros. Eu vendia e comprava livros o tempo todo. Um horror de peso. Depois havia sacolas e mais sacolas com lixo etc. Parecia uma coisa impossível car-regar tudo aquilo. Dei a chave (nunca me esqueço: o chaveiro tinha um ursinho ama-relo) do apartamento para E, e saí pela rua.
Lembro que fiquei triste. Desamparado. Sentia-me como que traído por E. Principalmente porque ela viu que era quase impossível andar com aquele peso todo. Mas eu ia andando, subindo a rua Augusta, e aos poucos nada mais importava, nem o peso. Eu parecia um desses cavalos de carga, acho que estava tão estranho que as pessoas ficavam me olhando. Algumas riam. Eu nem ligava mais.

4/3/2000
Engoli meu choro, fui engolindo. Eu não sentia dó de mim, achava que tudo aquilo era uma provação. Não tinha importância. Ia fazer coisas e mais coisas, me sentia super potente. Ia vender mais livros, pedir doações de livros, quadros, objetos de arte etc. Montaria uma lojinha onde ia vender tudo e fazer algum projeto social. Depois disso as pessoas iam ver que estavam TODAS erradas e EU certo. Pensava sempre em reciclagem de lixo.
Essas idéias foram me tomando cada vez mais. Eu queria ter contato com o mundo. Via como as pessoas podem ser infelizes tendo um emprego, 8 às 18, mesmo que tivessem dinheiro, posição. Me sentia útil estando na rua, ganhando um pouco de grana todo dia e comprando comida para os outros, sem acumular dinheiro.
Não quero pensar que isso seja uma doença, rotular PMD como os médicos fazem. Acho que o meu desejo, mesmo que descontrolado, de ver este outro mundo, de dormir na rua, de sentir na pele um pouco o que é o desamparo foi uma coisa posi-tiva. Não que eu ache que as pessoas devam chegar a isso no estado em que che-guei.
Ah, que coisa a vida. Podem pensar o que quiserem de mim. Que pensem, que arrotem e caguem nos seus utensílios de ouro. Tudo isso da grana vale nada.
Tenho raiva, ódio muitas vezes, mas sei que por enquanto a única forma de ficar mais “normalzinho” é tomar remédios. Que bosta! Talvez algum dia possa ser de outra forma. A única coisa que sei é que nunca mais quero voltar para um lugar como esse. Deus me livre, e livre todo mundo também.
O que fiz, embora de modo desordenado, foi como se eu tivesse vivido muitos anos em poucos meses. Queimei, dessa forma, meu corpo, me destruí um pouco, é claro, mas a gente depois renasce.
Ou não, Rimbaud queimou tanto o seu corpo que acabou morrendo aos trinta e seis anos, acho. Será que ele era PMD?
Mas, pensando bem, não é uma coisa que eu recomendo para as pessoas. Como essas propagandas de televisão: “Tome cagol, e acabe com todo seu problema de intestino preso. Beba cagol, eu recomendo. Testado e aprovado.” Daí o cara se borra todo...
O que mais me emputece é que as pessoas, principalmente os médicos, nun-ca querem conversar sobre isso. As pessoas acham que é coisa de “louco” e acabou. Isso é o medo da própria vida. Tô meio perdido nessa coisa toda, mas continuo.
Queria ver todos esses empresários tendo uma experiência dessas. Dormindo na rua, tomando chuva, ficar sem banho, sem escovar os dentes, passar fome. Cer-tamente pensariam mais nisso tudo. Eles sempre alegam que geram riquezas, em-pregos e essas coisas. Problema da pobreza é o governo que tem que resolver. Só mudam um pouco quando são assaltados ou seqüestrados.
Aí é: ai, meu deus! rezam pra valer, choram (eles que não derramam uma lá-grima nunca). Não me conformo de ver tanta hipocrisia. E o presidente e afins. Via-jando sem parar, casas luxuosas, jantares de fazer qualquer mendigo explodir de tan-to comer se estivesse lá. Coisas do existir.
Já imaginou o Antônio Hermírio numa dessas, vivendo na rua? Ele deve ter mais de 5 bilhões de reais de patrimônio, uns 3 bilhões de dólares, sei lá, já tem acho que uns 70 anos e uma compulsividade de trabalhar. Será que isso não é uma doen-ça? Precisariam chamar uma junta de médicos para tratá-lo. De onde veio todo esse dinheiro? Numa vida só, ninguém é capaz de trabalhar tanto, produzir, com suas pró-prias mãos tantas coisas para ter bilhões de dólares. Nem se trabalhasse 40 horas por dia. Só se ele fosse o Hércules, o Super Man, sei lá.
O dinheiro vem, no caso dos empresários, não do próprio trabalho, mas do trabalho do outro. Coisa gasta isso, tá todo mundo careca de saber. Gerar emprego, nesse caso, como os empresários querem, significa mais grana para eles mesmos.

Voltando à vaca fria. Estava na rua. Os mendigos. E tudo o mais.

Depois da casa da E, sei que fui para a casa de O, mas não me lembro mais se dormia lá todo dia, ou se ficava na rua. Lá fiquei pouco tempo. Ela não me agüen-tou e conversamos e fui embora. Para a casa de S, que estava tristíssima porque ti-nha perdido o namorado. Fiquei com pena dela, ela estava péssima.
Nos primeiros dias brinquei muito, e ela parece que gostou. Estava de mudan-ça para a praia, para esquecer as mágoas. Isso demorou alguns dias, nos quais fui ficando cada vez mais elétrico, mais agitado. Fiz um monte de coisas lá, que não que-ro contar. Coisas erradas, é claro, mas de muitas lembro só vagamente. Sei que aca-bei saindo de lá e logo depois ele foi embora também.
Conto assim rápido, me lembro de mais coisas, mas não queria ficar contando porque talvez chateie essas duas pessoas, de que gosto muito, que me acolheram em suas casas, e como eu já estava meio fora de mim devo ter chateado bastante.
Não que eu tenha sido insuportável o tempo todo, volto a repetir, tivemos bons momentos juntos, por isso prefiro omitir os maus momentos. Não quero muito ficar pisando em ovos. Eles se quebram facilmente! Não quero guardar mágoas e ressen-timentos, e espero que não guardem também. Além do mais, conto rápido porque estou cansado e quero que isso acabe logo. Espero.

Estamos agora no ano novo, perto dessa época foi que conheci C, por quem tive uma grande admiração. Era como se ele fosse o exemplo vivo das coisas que eu queria fazer. Ele dividia seu tempo entre São Paulo e Rio de Janeiro, onde trabalhava numa ONG. Trabalho com meninos de rua, ou favelados, não sei bem. Tinha sido pa-dre até uns quarenta anos, e agora há dez anos era isso que fazia. Eu continuava andando nas ruas, passando cada vez mais tempo na rua do que na casa das pesso-as que estavam me hospedando. Até o momento que, não tendo onde ficar, passei a dormir na rua.
Ia contando as coisas para C, que muitas vezes dizia que aquilo não era novi-dade para ele. Eu me chateava às vezes, mas isso não fazia diminuir minha admira-ção por ele. Em São Paulo ele trabalhava numa loja no “Jardins”. Devia ser essa a sua fonte de renda, nos finais de semana acho que ele sempre ia para o Rio.
Nas coisas que me dizia, sentia sempre que C estava ressentido de alguma forma com seu presente, sempre falava de problemas financeiros da loja, das dificul-dades de manter-se “vivo” no Brasil etc. Falava pouco de sua vida em si, de sua vida de antes, ela era belga, de sua família, amigos etc. Acho que eu também falava pouco da minha vida. De qualquer forma, pensava em saídas para ele ganhar mais dinheiro e ficar mais tranqüilo.
Acho que agora já estamos em janeiro. Sei que voltei a Campinas umas ve-zes. Duas. Três. Não sei precisar. Só sei que sempre arrumava alguma desculpa, pegava muitos livros meus e voltava para São Paulo. Ia vendendo os livros, conse-guindo alguma grana, dando comida para os mendigos. Ficava sem nenhum dinheiro. Todo dia era isso. Não sei como consegui viver esse tempo. Sei que comia mal, dor-mia quase nada. Alguns dias num quartinho com uma moça, numa pensão. Depois continuava catando lixo e tudo o mesmo ciclo.
Andava incansavelmente. Um dia, por exemplo, lembro de ter ido a pé, com uma mala cheia de livros, da avenida Paulista até a USP, para tentar vender alguns livros para um livreiro de lá. Depois sei que acabei voltando a pé também, porque não tinha nenhum dinheiro, a venda não se concretizara.
Um outro dia, fui até o Teatro Oficina. Depois fui subindo a pé a Brigadeiro Luís Antônio, até chegar na Paulista, daí fui até a Augusta. Conversei com uma menininha que vendia umas balinhas perto de um caixa eletrônico, enquanto sua avó ficava dei-tada um pouco distante vendo tudo. Depois desci a Augusta inteira, até o centro velho da cidade, fui andando, andando até a catedral da Sé, dei umas voltas pela Liberdade, indo de novo, já madrugada até o fim da Brigadeiro, subi, Paulista etc. Credo, já estou cansado só de contar.
Queria falar um pouco da menina aí de cima. Ela era uma graça, tinha uns sete anos mais ou menos, pois já lia um pouco e escrevia uns bilhetinhos pedindo grana. Se fosse empresária, ganharia uma fortuna, tal era a lábia que tinha. Eu sempre aca-bava dando algo para ela, mesmo sabendo que ela devia ganhar mais grana do que a metade das pessoas que moravam na cidade de São Paulo.
Dava a ela, além de grana, quando eu tinha, uns brinquedinhos que eu com-prava numa dessas lojinhas baratinhas, papéis para pintar, lápis de cor, comida. En-fim, eu tava parecendo mais era uma loja de secos e molhados. Sempre conversava com essa menina, que era espertíssima.
Um dia, sentei numa muretinha que dava para um estacionamento e fiquei conversando um pouco com ela, brincando, essas coisas. Por acaso, a avó estava conversando com uma outra mulher. Ela contava o que tinha comido no Natal ou Ano Novo, não sei. Gente, um banquete. Tipo lasanha, frutas que alguém deu, uma cesta básica dada por outro, frango, peru, uma maionese deliciosa, doces e por aí afora. Até parece a estória do homem da sopa de pedras que o meu pai me contava.

5/3/2000
Num outro dia encontrei um mendigo na praça da República. Era de Aracaju, segundo ele, jornalista formado, tinha AIDS, pediu-me umas roupas. Eu levei logo depois. Ele não estava mais lá. Fiquei esperando até que ele apareceu. Ele era muito engraçado, conhecia um amigo meu, poeta, de Aracaju, foi ele quem falou o nome primeiro.
Falava bem, esmolava bem. Era viciado em crack, pedra, ele dizia. Me contou que chegou a gastar três mil reais num mês com a droga, talvez fosse mentira.
Tudo isso, mais tarde, talvez possa me render muitos escritos. Mas eu não pensava nisso. Pensava que ele era um grande filho-da-puta, mas e daí?
Levei a roupa, minha própria roupa tirada da minha mala, e ele ainda quis ficar escolhendo, escolhendo, como se estivesse numa loja. Sei que ele vestiu uma calça e uma camiseta e saiu desfilando. E não estava drogado.
Fazia cara de coitado perfeitamente. Dizia para os que passavam: “Moço, me dá um trocado/trocadinho para eu comprar um lanche/comida, pelo amor de deus, estou com fome” e coisas assim indefinidamente. Eu lhe dei comida, grana também, afinal de contas ele queria era ficar “louco”, queria se drogar. Foda-se. Que ficasse, eu pensava.
Da mesma forma dei bebida, pinga, cachaça para eles, os mendigos. Uma vez achei uma garrafa de vinho quase inteira, no lixo, dei. E dá-lhe álcool. E dá-lhe a fuga do pobre. E de todo mundo, aliás. Dá-lhe álcooool. Foda-se. Ficava pensando o tem-po todo em soluções. A gente é realmente inútil. O mundo tá uma bosta cada vez mais fedida.
Muitas vezes ficava indignado, vendo mendigos safados. Pessoas que eu sa-bia que tinham casa, ou alguns que eram brutos mesmo, grossos, batiam nos outros. Mas pensava que também havia muita gente, na rua, que nem chorava mais. Que não tinha mais estoque de lágrimas.
Foi o caso de uma menina de uns 14 anos, que encontrei perto da catedral da Sé. A menina era como uma indiazinha, tinha um filhinho que ficava andando de lá para cá e falando coisas incompreensíveis o tempo todo.
Era bem de manhãzinha. Sentei perto dela. Eu tinha bolacha doce e alguma outra coisa. Ela também tinha comida. Dei um pouco de coisas para ela, e comi um pouco das coisas dela. A gente ficou conversando.
As pessoas passavam, olhavam. Parecia uma aberração alguém estar con-versando com ela. Ela tinha engravidado, a mãe expulsou de casa, ela veio com o cara para São Paulo, ele largou dela. Ela conseguiu um outro cara, que bebia e batia nela.
Milhares de estórias assim, claro. Mas deixem eu conversar com essa menina, por favor, não encham meu saco, negada.
Sei que ela morava sozinha, não mentiu para mim, disse que tinha uma casi-nha até boa, num lugar que devia ser uns dois quilômetros depois de onde o Judas perdeu as botas.
Mas tudo bem. Disse que dormia na rua, às vezes, porque ficava tarde para ela voltar para casa, e era menos perigoso ela dormir ali e esperar pelo dia seguinte. Não sei se fazia algum programinha, levantava uma grana, coisas assim, nem quero saber, nesse mundo tem de tudo. Mundo cão e camaleão.
Perguntei se ela não ficava triste, se ela não tentava ver a mãe, se ela chora-va. Nisso, nesse momento, nunca senti nada igual na minha vida. Nunca vi um ser humano tão novo dizer coisas tão “objetivamente”, tão cruamente.
Ela me respondeu que sentia saudade da mãe, mas que ela nunca a perdoari-a, o pai já estava morto. Chorar ela já havia chorado tudo o que ela achava que podia. Tinha rezado a Deus, tentado entender o que tinha acontecido com ela. Nunca nin-guém quis ajudá-la, e agora ela não precisava (orgulhosa que era) ajuda de ninguém. Só pensava em criar se filho, e por enquanto estava conseguindo.
A única ajuda que recebia era de vizinhos que às vezes ficavam com a crian-ça. Disse tudo isso com o olho só brilhando, altiva, digna, consciente de sua impossí-vel tarefa de viver. Quase vi uma lágrima, pensei uma hora, mas era meu olho todo embaçado que me enganara.
Cansei de contar.

Existem situações extremas que levam as pessoas para a rua. Sempre me comovi muito com pessoas meio limítrofes. Nem todos são bons, é claro. Há muita gente que faz da mendicância o seu trabalho. O que eles ganham é o excesso do que o sistema capitalista ou socialista gerou. Afinal, alguém dá aos mendigos um dinheiro que vai lhe fazer falta no mês? Tenho certeza que não. (Isso eu escrevi depois, nem sei quando. Queria que ficasse aqui, é uma coisa que eu penso, lúcido ou não)
Voltando ao C, pois esse é o gancho final da minha estória. Fui aos poucos me apaixonando por ele, que afinal de contas era uma pessoa admirável e filha-da-puta também como todos nós. Acontece que nessa época não tinha tesão, essa coisa de querer transar. Tanto que não fiquei com ninguém nesse tempo todo. Acho que o que vivi foi muito mais uma estória mental que corporal. Será?
Almoçamos juntos umas duas vezes. Ia até a loja e conversava com ele. Lem-bro que às vezes ele parecia infeliz por coisas que falava, o que eu considerava uma afronta com a vida. Como podia estar infeliz, fazendo o que mais uma pessoa podia desejar? Tinha uma vida boa, morava bem, ganhava algum dinheiro, ajudava os ou-tros acima de tudo. Tinha uma vida cansativa, é certo, mas despendida em coisas úteis.
O que me deixava desconcertado era uma certa arrogância contida, uma auto-piedade insistente. Talvez por problemas de amizade, sentimentais? Nunca soube. Ao mesmo tempo havia nele um humor fora do comum, humor inteligente que eu tanto gosto. Ele me fazia rir e isso apagava todos os defeitos que eu via.
Guardo por ele gratidão, pouca mágoa. Que passará. Guardo por dele a ima-gem de um ser que de algum modo me soube entender. Será? (Isso aqui tá parecen-do mais essas novelas mexicanas)
Mas vamos aos fatos. No desejo de conhecer a ONG no Rio, decidi ir para lá com C, que disse tudo bem (pra dizer verdade nem sei se ele deu ok). Aqui começo a ver que estava mesmo fora do juízo. E que C estava de alguma forma de dando cor-da, contribuindo com meu descontrole.
Não tinha dinheiro para a passagem aérea, não disse nada, não me lembro se tinha pedido dinheiro para alguém. Acho que tinha depositado alguns cheques de li-vros que eu tinha vendido, mas que não eram para estar compensados ainda. Real-mente não me lembro. Essa parece ser uma das coisas que acontece com o PMD, ele perde a noção do que pode gastar, faz dívidas, pede emprestado, gasta demais, coi-sas que eu fiz. Depois eu vou contar tudo.
Chegamos ao aeroporto quase na hora do vôo, tirei saldo no banco e nada. Pedi para C. pagar a passagem, depois eu lhe daria o dinheiro. Daí foi um jogo feito por ele. Ironias exageradas, dando a entender que eu nunca tinha entrado num avião, ou que aquele não era o meu mundo.
Na sala de embarque, por exemplo, disse-me que eu podia comer à vontade, que não pagava nada e coisas assim. Bom, no vôo acabei bebendo um uísque (de graça, claro, viu C), e fui falando acho que da coisa da reciclagem do lixo, coisa que para ele talvez não fosse interessante, ou que ele já estivesse cansado de pensar e falar sobre isso com outras pessoas.
Quase no Rio, por algum motivo, toquei a mão de C (foi algo nem nenhuma segunda intenção, é coisa que sempre faço com as pessoas, mas ele sendo padre, europeu, sei lá, achou que eu tinha segundas e terceiras intenções). Toquei a mão de C, ao que ele ficou super bravo, e me disse coisas grossas, que eu nem quis guardar em minha cabeça. Coisa totalmente besta isso da paixão.
Acontece que quando fico mesmo ofendido com alguém, sou capaz de rea-ções inexplicáveis (ainda mais naquele “estado”). Toda a euforia que tinha, em parte gerada pelo álcool, foi-se embora na hora. Emudeci. Em poucos minutos o avião ater-rizou. Ele me chamou para irmos, mas eu lhe disse que preferia ficar sozinho.
Foi o que fiz. Desci do avião, peguei minhas malas, ele estava me esperando, mas passei em sua frente como se não o conhecesse. Só me lembro que depois cho-rava incontrolavelmente. E fui andando, andando. Me veio um enorme cansaço. Para-va, fui jogando todo aquele lixo que estava nas minhas malas para ficar com menos peso.
Tinha medo. Sabia que o Rio é super perigoso. Não conhecia nada direito, pois tinha ido lá apenas uma vez. Andei assim, neste estado, chorando até vir aquela dor de cabeça, dor no rosto, no corpo todo. Não me lembro de mais nada desse dia. Não sei como, fui parar na Gávea, não me perguntem como eu cheguei lá.

6/3/2000
No Rio não sei como sobrevivi na rua. Acho que telefonei e pedi algum dinheiro para meus pais. Não, eu não fiz nada. Nos primeiros dias tava duríssimo. Sei que uma mulher cega, já velhinha, que ficava esmolando em frente à Casa da Gávea, naquela região que tem muitos bares, me dava comida, cigarro. Essa mulher sabia poemas do Castro Alves e de outros poetas românticos. Ela recitava e a gente ria. Ela passava a mão no meu rosto.
Um dia ela me disse que ia tentar fazer uma operação nos olhos num hospital lá perto, tinha consulta às dez da manhã. Não consegui encontrar o hospital. Depois nos vimos mais vezes. Tinha sido empregada doméstica, dormia no emprego, não tinha filhos, tinha vindo da Bahia. Quando começou a ficar cega, tudo desmoronou, parece que não tinha parentes no Rio, e os patrões, é claro, não podiam cuidar dela. O destino é mesmo madrasta má com algumas pessoas.
As coisas ficam muito confusas para mim. Lembro que escrevi algum poema para C, “Eu te dou nada...”
Estou ficando cansado disso tudo.

Ainda no Rio, não sei se alguns dias depois eu procurei o C, me portei como se nada tivesse acontecido. Acho que liguei para G, mas ela estava viajando, além do mais ela mora numa praia meio afastada, eu não iria até lá. Queria mesmo era rever C.
Na rua, como sempre, muitas coisas iam acontecendo.
Sem tomar banho, aquele calor insuportável, entrei no mar um dia e foi um sufoco para tirar o sal do meu corpo. Fui num monte de igrejas pedir ajuda, nada. Pro-curei uma coisa da prefeitura, nada. Impossível. Dificílimo. Tomei um banho meio im-provisado em alguma torneira nem me lembro onde. Por isso é que os mendigos fi-cam sujos. É tão trabalhoso que o melhor é ficar mesmo sem tomar banho. Comida? Demora, mas a gente acaba conseguindo alguma. Se não conseguir, tudo bem, pas-sa fome.

Não me lembro de mais nada. Deu um branco. Onde estou? No Rio? Em São Paulo? Em Londres? Guarujá? SOCORRO.

Só me lembro que devo ter voltado a Campinas ou São Paulo, e de novo ao Rio mais uma ou duas vezes. Sempre caminhando dias e dias. Que coisa exaustiva. Mas tenho que continuar.

Bom, sei que me lembro de um dia, no Rio, almocei com C, e ele estava brin-calhão. Até fez um cheque meu de 18 milhões de reais, eu disse que ele podia des-contar que era para a ONG, para que os projetos pudessem ser realizados. Depois tirei uns xerox lá na sede da ONG, não sei mais xerox do quê. Li um texto que C esta-va fazendo para pedir grana/equipamentos para uma empresa. Nem sei como voltei a procurá-lo.
Sei que essa segunda/terceira vez que fui ao Rio é que tudo começou a de-gringolar. Fiquei oito dias sem dormir quase nada. Meu corpo foi chegando a seu limi-te. Senti um pouco o que alguns mendigos devem sentir. Um total desamparo.
O tempo para mim foi ficando diferente. À medida que ia rodando as noites, mesmo sem perceber, era como se meu corpo fosse ficando de uma outra matéria. O corpo no limite do corpo.
Tudo era mais leve, mais desprendido de tudo. Era como se eu estivesse ven-do tudo aquilo de fora (esquizofrenia? paranóia?). Ia dizer que era mais ou menos como certos relatos que li sobre ópio, cocaína, ácido lisérgico, mas não era nada dis-so. Nenhuma droga me proporcionaria o que senti.
Os carros, as pessoas, tudo se movimentava num outro tempo: muito rápido, ao mesmo tempo que extático.
Lembro que um dia adormeci num gramado de uma praia perto de Botafogo. Acordei com um homem negro, meio animal, me olhando. Levei um susto, pensei que ele fosse me roubar. Que nada, era um louco, que passou a mão em minha cabeça, falou coisas incompreensíveis, era como se ele me quisesse ninar.
Fiquei envergonhado, quase chorando com aquilo, pois ele tinha se assustado mais que eu. O seu olho brilhava, como aliás o meu também brilhava nessa época, as pupilas um pouco dilatadas. Nosso olho brilhava, talvez efeito de alguma coisa em nosso corpo que nos modificava.
Parei. Sentei e recostei-me na minha mala. Sempre essa mala me perseguin-do. O sol estava a toda. Ouvi alguém cantando próximo. Era um jovem tocando vio-lão, ao lado de sua namorada. Depois ele parou. Começou a jogar umas pedrinhas na grama. E ficava olhando para elas. Eu me aproximei devagar. Falei algo que não me lembro.
Ele começou a me contar que queria se casar com a menina, queriam ter um filho, os parentes dos dois não aceitavam e por aí adiante. Disse que tinha levado um choque quando tocava guitarra. Depois disso ele lia a sorte com as pedrinhas. Lem-brei na hora de um conto de H em que o personagem joga ossinhos para ler a sorte. Sei que apresso os fatos, passo por cima deles e os esmago sem muito res-peito. Acontece que estou me cansando. Algum dia talvez eu consiga escrever de maneira a dar o devido valor, o peso mais exato que cada detalhe teve para mim.

7/3/2000
O tempo cada vez mais era uma coisa esquisita. Os dias se passavam e era como se um se sobrepusesse ao outro. Como se eles fossem finas folhas de seda uma sobre a outra. E molhadas. Sentia tudo como um contínuo (o que realmente é), um sem-tempo.
Tinha consciência, às vezes, de que estava fazendo coisas erradas. Estava em Campinas. Antes da última viagem que fiz ao Rio, fui ao banco, peguei um talão de cheques, mesmo sabendo que quase não tinha dinheiro para gastar. Mas dentro de mim acreditava que teria, ou que tinha. Estranho tudo. Voltei para casa. Arrumei uma mala. Disse que tinha que ir para o Rio. Inventei alguma coisa que não me lem-bro.
Fui para São Paulo. Rodei um pouco, vendi alguns livros, e quase sem ne-nhum dinheiro fui para o aeroporto. Chegando lá, comprei o bilhete de ida e volta, pa-guei com cheque, que eu sabia que não tinha fundos. Tomei o avião, desci no Rio. Fui para um hotelzinho em Botafogo.
Além de C, algo mais me atraía para o Rio sempre. Queria ver C, inventar para ele um alguém que eu não era. Como se me fosse possível ficar indo e vindo, sem fazer mais nada de minha vida. Como se eu tivesse um grande interesse na ONG, coisas assim. Além de tudo, há as praias, vida noturna, gente louca.
Mas daí acho que foi caindo a ficha. Fui percebendo que estava fazendo coi-sas erradas. Comia, dava um cheque. Dormia no hotel, dava um cheque. Pegava um táxi, dava um cheque. E como eu estava mais ou menos bem vestido, acabei dando calote em todo mundo. E os cariocas que pensam ser tão espertos!
Ao mesmo tempo, sabia que os cheques iam voltar. Foi neste momento que comecei a ligar para todo mundo, pedindo dinheiro, porque o pouco dinheiro vivo que eu tinha já havia gastado para dar comida aos mendigos.
Lembro que as pessoas se recusavam a colocar dinheiro na minha conta e eu ficava puto. Não sei, mas acho que minha mãe, minha cunhada, meu irmão parece que colocaram algum. Mas parece que eles se recusavam a colocar mais dinheiro, porque queriam que eu voltasse da minha loucura. Sabiam que eu ia gastar, gastar...
Não sei, acho que dessa vez fiquei poucos dias no Rio. Talvez uns cinco ou seis. Por fim, eu ia ver uma peça de teatro no Centro Cultural Banco do Brasil, peguei o metrô e saí dele embaixo de uma chuva torrencial. Fiquei todo molhado, e além do mais cheguei atrasado para ver o espetáculo.
Fiquei zanzando por perto um pouco, tentava ligar (não sei para quem era) mas os telefones estavam impossíveis. Ficava cada vez mais molhado. Fiquei en-charcado depois de algum tempo. Tive que entrar no Centro Cultural BB de novo, fui a um banheiro. Fiz cocô, troquei minha roupa e fiquei lá horas.
Comecei a ter uma angústia indescritível. Nunca tinha tido nada igual. Era um desejo de ir, de ficar, de não saber para onde ir. Um mal estar de não querer ir para parte alguma. De querer estar em algum lugar onde não tivesse ninguém. Um desejo de estar num lugar que não existia.
Saí, com o firme propósito de ir para o aeroporto e voltar para São Paulo. Fui caminhando rápido, a chuva já tinha amainado, mas eu caminhava em círculos. Ia e voltava. Perguntava se havia algum ônibus dali para o aeroporto. A pessoa falava, mas eu não ouvia. Pensava em ir a pé. Mas já era muito tarde. Não ia ter mais vôo. Queria ir para algum hotel de novo. Mas eles não iam mais aceitar cheque. Já era tar-de. Era perigoso ficar ali. Eu ia para São Paulo. Eu não ia. Andava para lá, para cá. Ia e voltava como uma bola de pingue pongue ensandecida. Estava totalmente perdido.
Depois de muito tempo de indecisão, finalmente resolvi. Fui andando por um túnel que eu sabia que ia dar para os lados do aeroporto. Encontrei um ponto de ôni-bus, esperei um pouco, e nuns dez minutos estava correndo, dentro do aeroporto, para ver se ainda tinha jeito de ir embora.
O último avião para São Paulo estava saindo, já com as turbinas ligadas. Dis-seram que era impossível. Eu falei com uma pessoa, com outra, implorei. Pedi para chamarem chefes... Por fim, fizeram o avião ser desligado. Corri, corri, e finalmente estava livre.
Isso é o que eu pensava é claro.
Cheguei a São Paulo tarde. Do aeroporto, liguei para C, ele já estava dormin-do, quando atendeu o telefone me disse que eu não podia dormir em sua casa. Liguei para M, ela não estava. Liguei para mais alguém? Não me lembro. Peguei um táxi. Cheque voador de novo. Fiquei na avenida Paulista. Novamente na rua, novamente sozinho, novamente desesperado. Minha tranqüilidade durou apenas o tempo do vôo.
Pensei que ficava aquela noite andando. Dormia na rua, mas depois no outro dia não tinha dinheiro nem para ir para Campinas.
No dia seguinte, por milagre, tinha dinheiro na conta. Acabei gastando quase todo o dinheiro. Fiz uma porção de coisas que eu não vou contar. Não porque não merecem ser contadas, mas é porque já estou exausto. Fica para algum dia.
Voltei para Campinas. A excitação não foi embora, diminuiu um pouco, mas ainda ia dormir muito tarde. E devia falar como um rádio ligado dia e noite.
Fui percebendo que tinha mesmo que ir ao médico. Ao mesmo tempo tinha uma certa resistência. Ia ter que tomar remédios. Agüentar aqueles psiquiatras mu-dos, esperando eu falar alguma coisa. Eu falando, falando e eles não me dando res-posta. Eu não queria assumir meu descontrole, pensava que tudo aquilo ia passar.
Tô ficando mais cansado ainda disso tudo. Vamos mais rápido agora. Tipo a mil por hora.
Aos poucos resolvi realmente procurar um médico. Mas no dia, minha cunha-da, que é enfermeira, disse que ia junto. Fui a um postinho perto de casa, nada. Ao hospital da Puccamp. Nada. Não percebi que a intenção dela era arrumar um jeito de me internar. Por que não me deram nenhum medicamento?
Parece que esses canalhas ainda não sabem lidar com isso que eu tenho sem ter que mandar a gente para essas prisões. Queria entender é porque não tentaram conversar comigo. Lembro que ficava brincando. Falava muito, mas certamente não era perigoso. Será que os médicos acabam vendo sempre pacientes como eu como inimigos? Como seres potencialmente assassinos?
Sei que acabei dando trabalho. Queriam me aplicar, na Unicamp, remédio na veia, sendo que eu já tinha dito que não queria isso. Que o que eu queria era algo para me acalmar, para fazer dormir. Será que não existe nenhum remédio via oral que seja potente, que faça a pessoa dormir bastante? Será que não podiam ter feito isso antes, e depois, sei lá, ter me dado algo (mesmo que na veia) para eu dormir uns di-as? Será que eu precisava mesmo ser internado? Será que não havia outro recurso?
Não acho que esses médicos e enfermeiros tenham ética. Queria mesmo era processá-los. Não poderiam ter dado algo para me acalmar, em vez de fazer com que eu ficasse cada vez mais irritado? Quem não fica irritado desse jeito?

Já desisti de tudo. Não quero contar mais nada.

Assim foi que eu vim parar aqui.

Se algum dia eu achar que vale a pena, talvez conte tudo de outra forma.

Que bosta.
Merda estar aqui.

Merda.



Voltei. Passou tempo do texto aí de antes.

Já saí do hospício. Andei lendo as coisas do diário. Estou ficando cada vez mais para baixo. Tento fazer coisas, mas tudo me parece cada vez mais inútil. Tentei ganhar alguma grana, mais não aconteceu nada...
Quanta ilusão isso de ganhar grana e viajar o mundo todo. Não fui nem pra China nem pro Japão. A realidade desabou na minha cabeça.
Gostaria de acabar com uma coisa que está num livro que se chama O teatro, de uma autora que eu acho que é francesa, Emma Santos.
Gostaria que fosse esse texto porque relata a experiência do desconforto de se estar preso em si mesmo. Sei lá o porquê. Não quero ficar dando explicações. O que importa é que o texto é lindo.
É assim:

“A manhã volta. A manhã volta sempre. Por mais Lagartil Equanil Nubarene que tomes, ela volta sempre. Podes experimentar Melleril Nembutal sedativos, ela volta. Hipnóticos anti-espasmódicos. A manhã volta. Sempre a manhã. Ain-da que anteponhas uma barreira entre ti e a luz, que feches a janela, que te en-roles nos lençóis, que te enrosques toda debaixo dos cobertores, que te escon-das no colchão, que te afogues no sono, que te percas, que te abafes num so-nho. Somes-te como um bicho por detrás dos teus olhos fechados, cavas um mísero buraco, escavas com as unhas no travesseiro, recusas-te a despertar. A manhã voltou. São dez horas meio dia talvez duas horas, não tem importância é manhã. Mais uma. É preciso recomeçar mais um dia.
Sozinha.”