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LITERATURA PARA TODOS OS PALADARES



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CINCO ESTUDOS PARA UM ENSAIO


 EDSON COSTA DUARTE

 

 

 

DO TEMPO: CINCO ESTUDOS PARA UM ENSAIO

 

 

 

 

 

2005

 


I N T R O D U Ç Ã O

 

A produção destes ensaios contribuíram para que eu pudesse repensar algumas questões relacionadas à criação literária, ler uma bibliografia que posteriormente me deu suporte para vincular algumas discussões teóricas aos problemas que me viam à mente no decorrer da redação da tese.

A principal questão a ser mencionada é a questão do tempo. Outros questionamentos importantes que me propus quando da feitura dos trabalhos foram a "encenação conceitual" e a "movência conceitual", que estão diretamente relacionados à arquitetura, à estrutura de minha tese, que é a de uma peça de teatro. Essa idéia me foi suscitada revendo o trabalho, intitulado Tríptico inacabado

 

PRIMEIRO ESTUDO

Kant leitor de Kant: para uma estética da falência

 

Partindo de um artigo de Marcos Müller sobre o conceito "intencionalidade operante", de Merleau-Ponty, e da descrição do Gênio, na terceira crítica de Kant, A crítica da faculdade de juízo, retomo uma idéia já pensada em relação à obra de Mikhail Bakhtin: a "movência conceitual".

No ensaio exponho a hipótese de que Kant, ao reler a si mesmo, ao longo de sua obra filosófica reflete e refaz a idéia de que o "eu penso" determina e legisla (re-produz), e isso o conduz a um impasse conceitual quando na terceira Crítica esse "eu penso" passa a produtor. Esse novo enfoque conceitual do "eu penso" estará baseado na noção kantiana de reflexão estética, sendo exemplificada em nosso texto pela descrição do Gênio.

Ora, embora neste ensaio a idéia ainda seja embrionária, as derivações dessa hipótese poderão ser aprofundadas mais adiante, ao embasarmos teoricamente essa "movência conceitual", teremos claro como os grandes autores e pensadores sempre estarão revendo e atualizando os conceitos presentes em suas obras.

 

SEGUNDO ESTUDO

O nonsense em Samuel Beckett

O ensaio parte da idéia de que o nonsense, entendido como uma forma simples (Jolles) ou um cronotopo (Bakthin), é um subgênero do cômico. O nonsense, ora entendido como uma ausência ora como um excesso de sentido, se caracteriza como uma violência contra a semântica. Sendo assim, temos uma quebra da ordem lógica que conhecemos e esperamos que se realize. Essa quebra acontece como para que outra lógica se efetive, que é a lógica da oposição, do desafio ao senso; e para que uma nova ordem se estabeleça, agora lúdica, aleatória, livre da carga de sentido.

Em seguida, apontamos como o nonsense aparece na peça "Esperando Godot" de Samuel Beckett. Na obra do escritor irlandês, percebemos que o cômico, o nonsense, reverte sua natureza mais direta e superficial,  passando a ter uma nova qualidade, que num primeiro momento pode nos parecer estranha a ele: a sua tristeza fundamental. Estamos próximos daquilo que Pirandello chamou de "humorismo", que se caracteriza pelo sentimento do oposto, enquanto o cômico seria a percepção do oposto. Isso acontece quando não nos sentimos superiores às personagens, mas começamos a nos identificar com elas. Aí, nossa gargalhada se transforma em um sorriso. Por isso, o nonsense em Beckett não constrói uma vertigem do riso, mas gera um riso pela metade, profundo e pesado como o é nos grandes autores cômicos.

 

TERCEIRO ESTUDO

Tríptico inacabado (corpo em trânsito: da teoria à criação)

Neste ensaio, proponho a fusão da teoria, do exercício de leitura e da prática criativa. Pensando num mesmo eixo temático, as possíveis representações do corpo na arte, faço três textos em que enceno três modos de apresentação desta questão. O trânsito entre estes três estados, ou modos de ver o corpo, nos devolve um possível quadro em movimento: um tríptico inacabado.

O mote principal do ensaio é a tentativa de determinar como algumas possíveis representações do "corpo" na arte. Para tanto, num primeiro momento me detenho no desenho de um quadro teórico sobre a representação do corpo na literatura. Depois, verifico o modo como o corpo "grotesco-escatológico" aparece no teatro e na prosa de Hilda Hilst. E, por fim, num terceiro momento, penso uma possível ficção de meu próprio corpo, escrevendo um texto literário.

 

QUARTO ESTUDO

Para uma estética da resistência

Entendendo resistência como o eterno retorno do tempo, a poética da resistência é aquela que não se opõe ao antigo, mas que traz em si todos os tempos (esse presente que instaura "o futuro do passado"), e portanto os problemas intemporais do ser humano. Uma poética da resistência é aquela que se realiza pelo enfoque sempre  renovado da palavra e da forma de contar. Uma poética da resistência é aquela que funda, inaugura. 

A partir desta idéia, produzimos um  ensaio que analisa o conto "Rútilo Nada" (1992), de Hilda Hilst, procurando entendê-lo num fazer literário que persistirá além da contingência de seu tempo. Num primeiro momento, contemplamos algumas idéias presentes nos textos de Walter Benjamin sobre Baudelaire e Brecht, detendo-nos na questão do conceito do tempo. Em seguida, passamos a análise do conto, propriamente dita.

 

QUINTO ESTUDO

Babelização e desbabelização (para uma utopia do virtual)

Ensaio que se ocupa da descrição sumária de algumas características da chamada cultura virtual, aqui pensada a partir de algumas discussões feitas sobre o conceito do tempo. A utopia, neste caso, está atada ao movimento vertiginoso e infinito do próprio tempo, e nos ajuda a delinear os contornos da babelização e desbabelização. A babelização pressupõe mecanismos de produção/recepção relacionados à proliferação, à confusão (Babel) ou amálgama de linguagens e materiais (suportes) presentes na cultura virtual. A desbabelização está ligada à reprodução do mesmo, do similar, às homologias ou similitudes, ao pastiche e à paródia disseminados na cultura virtual.

Ao entendemos por "utopia" o ponto de junção de um tempo e de um espaço, temos esboçado o lugar conceitual de onde podemos observar e compreender a cultura e o objeto virtuais. Quando falamos do virtual, estamos falando do que está totalmente imerso, diluído no tempo, numa agoridade angustiante (o aqui-agora), e também de algo que só existe enquanto origem no imaginário, estando, portanto, fora do tempo (no lugar-nenhum). Aí, o caráter paradoxal que o virtual carrega em si (mimetismo e metamorfose do tempo), que nos remete ao duplo sentido da palavra utopia.

 

 


PRIMEIRO ESTUDO

 

KANT LEITOR DE KANT: PARA UMA ESTÉTICA DA FALÊNCIA

 

(...) vê-se o esboço de uma estética um pouco estranha. O que nela sustenta o sentimento estético não é mais a livre síntese das formas pela imaginação, mas a falência das sínteses. Falha de síntese do lado da faculdade de apresentação, ao que responde, do lado do objeto, 'das Unform', 'die Formlosigkeit', a não-forma, um infortúnio da forma. Não que o objeto seja monstruoso, mas a forma deixa de ser o grande negócio em matéria de sentimento estético.[1]

 

 

Gostaria de expor uma hipótese.

Para tanto, retomo um artigo de Marcos Müller intitulado "Reflexão estética e intencionalidade operante"[2], que analisa a existência de "uma operação primitiva de estruturação temporal de nossas experiências" (operação essa que independe de nossa consciência) presente na noção kantiana de reflexão estética.

Segundo Müller, Merleau-Ponty pensa o conceito fenomenológico de "intencionalidade operante" como um desdobramento, uma retomada das conseqüências legadas pelo conceito kantiano de reflexão estética.

Gostaria, agora, de perseguir esta hipótese.

Para tanto, apoiarei meus comentários na Crítica da faculdade do juízo,[3] de Kant, mais precisamente na descrição do Gênio (parágrafos 46-50).

O "eu penso" kantiano, na terceira Crítica, ganha uma nova arquitetura. Nas duas Críticas anteriores ainda temos um "eu penso" (que determina e legisla) como uma fonte organizadora das experiências do mundo, acompanhando todas as representações que fazemos. Na terceira Crítica, veremos que o "eu penso" deixa de ter esse papel reprodutor de um sistema de regras preestabelecidas que constituem o arcabouço da experiência. Agora, o "eu penso" é produtor, pois "funciona" a partir de regras que só passa a conhecer no momento em que cria.  

Esse deslocamento abre uma fenda no sistema crítico kantiano, ao mesmo tempo que possibilita alargar os horizontes de atuação do "eu penso". Ou, usando as palavras de Lyotard:

 

O Eu, com seus conceitos, não pode resolver o problema do fim perseguido pela finalidade estética. Uma vez liberada das responsabilidades que o conhecimento dos objetos lhe impõe, a imaginação não trabalha mais de maneira reprodutiva, mas produtiva.[4]

 

Vemos que aqui, a síntese não é de produção, contrariamente à primeira Crítica, em que havia três sínteses apresentadas ao conhecimento: de apreensão (na intuição), de reprodução (na imaginação) e de recognição (no conceito). Lyotard explica como esse "eu penso", antes visto como uma "consciência" pura e imutável, ganha, por assim dizer, o tempo, cai no tempo, participando, agora, pelo poder da imaginação, de um mundo que se move.

    

KANT E O GÊNIO

Numa famosa carta de Kant a Reinhold, de 18 de dezembro de 1787, o filósofo diz que se dedica

 

(...) a uma crítica do gosto, a propósito da qual descobre-se uma nova espécie de princípios a priori. Com efeito, as faculdades da alma são três: a de conhecer, o sentimento de prazer e de dor, e a de desejar. Encontrei na Crítica da Razão Pura (teórica) princípios a priori para a primeira faculdade, e na Crítica da Razão Prática para a terceira. Procurava também (esses princípios) para a Segunda faculdade.[5]

 

Estamos, portanto, diante do nascimento da Crítica da Faculdade de Julgar, que supostamente seria aquela que daria o remate, a finalização à arquitetônica do sistema filosófico kantiano. Para tanto, Kant se ocupará dos juízos reflexionantes, do belo, do sublime e do Gênio. Este último é nosso objeto de estudo deste ensaio.

Passo, agora, a uma descrição sucinta de como o conceito de "Gênio" era entendido de formas diferentes na época de Kant.

Em dois ensaios intitulados "Schiller anti-romântico" e "Beethoven e o Romantismo"[6], Anatol Rosenfeld fala da Alemanha da época de Kant, Schlegel, Goethe, Schiller, do "Tempestade e Ímpeto" (Sturm und Drang, movimento que empolgou as letras germânicas mais ou menos entre 1770 a 1785), e do Romantismo propriamente dito (que, segundo Rosenfeld, "(...) começa a manifestar-se apenas por volta de 1797-1798, expandindo-se até 1830 em várias ondas através de vários grupos regionais, em parte bem divergentes.").

O que me interessa, aqui, é marcar esse momento de passagem, entre concepções estéticas divergentes e dispersantes, em que a Crítica de faculdade do Juízo é pensada, elaborada e escrita.

Um momento de tensão, de disputa: as tendências acentuadamente "anti-românticas" de Schiller e Goethe, pelo menos durante ampla fase de suas vidas[7], que pregam a disciplina e o trabalho, em oposição ao "elogio à preguiça dos românticos". Por isso, Schiller escreve numa carta: "Entusiasmo não basta; exige-se o entusiasmo de um espírito culto."

Kant, por sua vez, segundo Rosenfeld, está com um pé em cada lado dessa ponte conceitual estética:

 

Kant, que na sua estética tende em geral a concepções classicistas, ficou, contudo, impressionado pela teoria do 'gênio original' dos pré-românticos. Daí a sua tese de que o gênio não obedece e sim instaura as regras. Beethoven, embora seguisse no fundo os cânones classicistas, é sem dúvida adepto dessa concepção. Declarava, talvez com certa ironia, ouvir raramente a música de outros compositores, sugerindo que isso pudesse enfraquecer a singularidade das obras. Quando lhe apontavam criticamente certas passagens musicais suas por ultrapassarem o permitido no desrespeito às regras da composição, responder: 'neste caso eu as permito' (as passagens). [8]

 

Essa oscilação entre o classicismo e o pré-romantismo dará uma espécie de curto-circuito na cabeça do filósofo. O que fará com que ele produza uma teoria do Gênio inovadora, única.

Por isso, ao mesmo tempo que afirma (parágrafo 46, da Crítica de Faculdade do Juízo) que Gênio é um talento para produzir aquilo para o qual não se pode fornecer nenhuma regra determinada, dizendo que pode haver na arte do Gênio uma "extravagância original" (teoria pré-romântica), essa mesma arte deve ser modelo, exemplar, deve servir a outros como modelo, padrão (teoria clássica).

A mesma oscilação será encontrada quando Kant diz que os gênios são os preferidos pela natureza (parágrafo 47), que sua arte morre com eles, não podendo ser comunicada a outros; e embora sejam gênios, a arte bela só é produzida quando o talento do gênio é moldado pela escola.

Os próximos "saltos" de Kant serão mais perigosos para a manutenção do princípio de que o "eu penso" pode acompanhar todas as minhas representações. Investindo a faculdade da imaginação de um caráter produtor, que é capaz de criar uma outra natureza (parágrafo 49) a partir da matéria que a natureza lhe dá, o filósofo lhe dá uma independência inédita.

Kant tenta em vão dizer que os princípios da faculdade de imaginação se situam mais acima na razão (parágrafo 49). O problema é que  não estamos mais diante de idéias prontas que se amoldam a um categoria, que por sua vez se conforma a um esquema transcendental da razão.

O Gênio, não podemos esquecer, não segue regras. Ele joga livremente com a imaginação. Ele é da ordem do tempo, do fluxo do tempo, e portanto as idéias que produz são mutáveis, são movimento. Por isso Kant escreve (parágrafo 49):

 

Tais representações da faculdade de imaginação podem chamar-se idéias, em parte porque elas pelo menos aspiram a algo situado acima dos limites da experiência, e assim procuram aproximar-se de uma apresentação dos conceitos da razão (das idéias intelectuais), o que lhes dá a aparência de uma realidade objetiva; por outro lado, e na verdade principalmente porque nenhum conceito pode ser plenamente adequado a elas nas intuições internas.

 

Temos aí, o caráter mutante das idéias estéticas, elas aspiram algo, que está situado acima dos limites da experiência, chegando às vezes ao supra-sensível. Essas idéias, neste caso, são como que livres de uma "forma", elas avançam cegamente, procuram se conformar a um molde, mas sempre se tornam outras. Cito novamente Kant (parágrafo 49):

 

Em uma palavra, a idéia estética é uma representação da faculdade de imaginação associada a um conceito dado, a qual se liga a uma tal multiplicidade de representações parciais no uso livre das mesmas, que não se pode encontrar para ela nenhuma expressão que denote um conceito determinado, o qual portanto, permite pensar de um conceito muita coisa inexprimível, cujo sentimento vivifica as faculdades de conhecimento, e à linguagem enquanto simples letra, insufla espírito.

 

Essa multiplicidade de representações prenhes de formas, que possibilita o pensar muita coisa inexprimível do conceito, dando novo ânimo às faculdades de conhecimento e à própria linguagem, opera um transbordamento do "eu penso".

Ora, o que se vê é que pouco amparo resta: a faculdade de imaginação faz um jogo livre e fugaz, sem nenhuma regra, com uma finalidade sem fim, e produz algo que, embora associado a um conceito dado, possibilita uma multiplicidade de representações.

Estamos à beira da falência. Na quase erupção do sistema crítico. Mas convém ressaltar que não falo de ruínas estáticas no tempo. Falo de ruínas que se movem.

 

O GÊNIO: O EU PENSO PENSANDO  

Falemos do "eu penso" cindido, em trânsito. Um "eu penso" da ordem do gerúndio, do continuum do tempo. Um "eu penso" inaugurando o conhecimento, para o qual ele mesmo não consegue mais dar regras.

Esse "eu penso", da Crítica da Faculdade do Juízo, tem essa "movência" primitiva das fontes. Ele cai no fluxo do tempo, para daí espacializar e temporalizar os conceitos em categorias sempre mutantes.

O "eu penso" das duas primeiras Críticas é ainda um eu que re-produz o múltiplo, a partir de um conceito particular, subsumindo desse particular o universal. Esse paradoxal "movimento estático ou inercial" do pensar segue uma mecânica preestabelecida, que seria a fonte, a origem do processo do conhecimento.

Na terceira Crítica, esse "eu penso" é um  "eu pensando, inaugurando, produzindo, originando". Esse "eu" produz algo, que embora seja universal e necessário (como diz Kant), tem uma finalidade sem fim, não pode ser explicado por regras, nem o próprio "Gênio" que é aquele dotado de talento pela natureza consegue explicar as regras de produção de sua arte bela ou sublime.

Estamos aqui diante de uma teoria de passagem, de fluxo, de um "eu" que transborda de si mesmo no momento em que passa de re-produtor a produtor, de paciente a agente, um "eu em trânsito".

Um "eu" que se inaugura enquanto queda dinâmica no continuum do tempo (Gênio), e não mais enquanto "eu" que se amolda à mecânica estática do tempo.

Espaço inaugural da "movência do eu", o Gênio não corre mais o curso de um rio que margeia as montanhas, levando as águas para o mar. O Gênio de Kant transborda as margens, se mistura a elementos outros, e daí observa as possíveis representações do  real.

Esse "eu criando" corre em sentido anti-gravitacional, contra a corrente lógica do pensamento, é uma espécie estranha de água que se transforma em larva e frui de uma outra matéria da experiência. Larva que eclode e ao respirar o ar inaugural da criação já é outra coisa que não o informe. É o próprio contínuo do tempo que se elabora e se refaz.

Esse "eu" é sempre: travessia.

 

FINITA VIA

Para finalizar, gostaria de expor uma idéia nascente, provisória e embrionária: Kant é um grande leitor de si mesmo.

Embora haja uma força de aglutinação em seu sistema crítico, o filósofo não se furtou a pensar seu próprio sistema, alargá-lo, expandi-lo até um limite de tensão em que ele mesmo perde um pouco o controle sobre o que o seu próprio "pensar" lhe dava.

Kant chega a esse limite, a esse ponto de excesso de onde não pode mais recuar, apenas retomar a si mesmo, ao que já estava escrito, para daí procurar "entender" o alcance de seu sistema crítico.

Kant é, antes de tudo, um grande leitor de Kant. Por isso, depois das duas introduções para a primeira Crítica, pensava que o sistema já estava pronto. Mas não. Houve ainda a segunda Crítica. E por fim, a terceira Crítica, com mais duas introduções.

Ora, para que se preocupar tanto em "escrever" e "re-escrever", em modelar e remodelar conceitos? Parece que Kant, insatisfeito com sua "revolução copernicana", pretendia fazer sua "revolução kantiana".

Não penso que Kant fosse tão certo, tão seguro do desenvolvimento de seu sistema filosófico, não penso que ele acreditava estar fazendo algo tão definitivo.

Ele não é o fim da linha, não se pensa assim, mas pensa-se como uma ponte qualquer do "espaço-tempo" da história do pensamento humano, pensa-se como um lugar de onde pode dar muita água, água minado da fonte onde muita gente vai beber.

Para matar a sede, ou cuspir fora, não importa, o fato é que falem bem ou mal, o fato espantoso é que sempre falam de Kant. Daí a prova de que ele fez uma estética um pouco estranha. Mas livre. Inaugural.    

 

 

SEGUNDO ESTUDO

 

O NONSENSE EM SAMUEL BECKETT

 

Não tratarei, neste ensaio, o nonsense como um gênero literário, restrito ao período vitoriano, tendo como representantes, ou fundadores, Lewis Carroll e Edward Lear, do modo que faz Myriam Ávila.[9]

Na contramão do que afirma a autora, pensarei o nonsense como um subgênero do cômico. Que Carroll e Lear foram os primeiros a elevar o nonsense à categoria do literário é uma hipótese acertada, visto que geralmente as formas literárias coexistem, às vezes, durante muito tempo na oralidade, para depois serem efetivamente elevadas, por assim dizer, ao que poderíamos chamar "alta" literatura por algum grande escritor.

Aceitar o nonsense quer como uma "forma simples" (Jolles) ou um "cronotopo" (Bakhtin), parece ser muito mais produtivo, pois desse modo, ele se insere em estruturas narrativo-poéticas maiores, podendo ser encontrado em vários autores de diversas épocas.

Do modo como o entende Myriam Ávila, o nonsense fica reduzido a um campo de atuação muito estrito, devido ao que chamo de "engessamento" conceitual.  Mesmo na obra de Carroll e Lear, como se depreende pela leitura do estudo citado, o nonsense "puro" só apareceria em alguns momentos.

Assim, fica a pergunta: qual seria a eficácia e as vantagens críticas de entender o nonsense nos termos em que nos propõe Ávila?

O que quero argumentar é que buscar pela "pureza" de uma forma literária é menos produtivo que atentar para a sua disseminação para as outras formas, para esse amálgama que se faz quando os autores, atentos à perfeita realização estética conseguida por um escritor, a seu apuro literário, fazem uma espécie de "reverência", uma homenagem a esse mesmo autor, quando se apropriam deste modo de fazer literário.

Procurar um gênero puro, como quer a autora, penso ser temerário, pois quanto mais se avança na história literária o gênero híbrido é cada vez mais presente. Discussões como essas, penso, trazem em si um certo tom de anacronismo.

 

SOBRE O SENTIDO FLUTUANTE

O nonsense já foi definido, ao longo da história literária, como uma violência contra a semântica ou, em alguns casos, em vez de uma ausência, como um excesso de sentido.

A palavra nonsense pode aparecer, em dicionários, como uma fala ou escrita sem significado, como um comportamento tolo, ou aquilo que foge do senso, ou como palavras ditas ou escritas que não fazem sentido ou portam idéias absurdas, e também uma ação absurda ou sem sentido.

Ora o nonsense vem definido como uma ausência de sentido na fala, na escrita ou mesmo no comportamento de uma maneira mais geral, ora como uma manifestação literária.

No fim das contas, trata-se de um rompimento com convenções preestabelecidas, com a ordem lógica, ordem que conhecemos e esperamos que se efetive.

Esse rompimento efetua essa "quebra de expectativa" do leitor, porque a quebra da lógica acontece para que outra se estabeleça que é a lógica da oposição, do desafio ao senso, e impõe-se uma nova ordem, por sua vez, lúdica, aleatória, flutuante, livre da carga de sentido.

Trata-se de apontar regras sem desconsiderá-las: abandonamos formalmente a regra, o gramatical, mas estamos ainda na língua. Há transgressões, mas que não são completamente arbitrárias.

O nonsense não é um caos. Não se pode pensar que o que está na língua seria a ordem e que além dela só há a desordem: a ordem na língua é sempre parcial e a desordem além de suas fronteiras não é total.

Se o nonsense se dá, paradoxalmente, porque por um lado tentamos interpretações plausíveis para tudo, porque tentamos manter analogias, porque esperamos encontrar um sentido; por outro lado, ir contra o sentido é algo como uma tentação atordoante.

Dessa forma, o que temos é um trabalho para o leitor desvencilhar. Para que admitamos a possibilidade de uma leitura nonsense, para que admitamos um momento em que a leitura feita já ultrapassou os limites permitidos pelo texto, ou uma leitura que está fora do universo de leituras possíveis daqueles texto, é preciso encarar os elementos textuais como de grande relevância neste processo.

Mas é preciso também dar serviço ao leitor: é ele quem, com base no elemento textual, faz a leitura de que é capaz, reelabora os sentidos, a partir de um referencial próprio. Muitas vezes, com base neste referencial, o que se dá é uma perda de referência, ou, em termos usados pelo crítico russo Bakhtin, afastamentos do que seria o tema do discurso.

A melhor definição dessa caminhada do leitor  nos é dada também Bakhtin, com o conceito de "contra-palavra". A contra-palavra é o próprio espaço de elaboração e construção dos sentidos. E o processo de compreensão dos enunciados é, além de ativo, responsivo. Diz o crítico:

 

Compreender é opor à palavra do locutor uma contra-palavra (...) é orientar-se em relação a uma enunciação, fazendo corresponder (...) a cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender (...) uma série de palavras nossas, formando uma réplica. Quanto mais numerosas e substanciais forem, mais profunda e real é a nossa compreensão.[10]

 

Nossa réplica no processo de compreensão da enunciação alheia, as contra-palavras que cada uma das palavras do outro suscita em nós busca o tema do discurso.

Posto assim, o tema é a noção de que eu, como leitor, preciso: distinto da significação que é apenas potencial, o tema é concreto, em si, a significação não quer dizer nada, sendo "(...) apenas um potencial, uma possibilidade de significar no interior de uma tema concreto."[11]

Em suma, poderíamos descrever assim o processo de significação: um signo lingüístico que flutua na busca de uma forma, de um possível sentido, que se amolda num determinado tema.

O que acontece, no nonsense é que a contra-palavra sempre nos devolve um excesso ou carência de sentido, nunca a medida exata do mesmo. Por isso, é que estamos ainda na língua, mas além ou aquém de sua lógica, além ou aquém de qualquer possibilidade de fixar o sentido.

Daí esse caráter de "movência conceitual", de "significação flutuante", presente no nonsense, pois ao estabelecer-se como um jogo do sentido, cujas regras são formuladas no instante mesmo em que ele é feito, a cada lance o leitor/ouvinte deve estabelecer novos parâmetros para a interpretação.

O nonsense opera, portanto, com a expectativa do leitor, como na paródia, onde um texto fonte serve como "interlocutor", e muitas vezes com a quebra dessa mesma expectativa, pois o leitor deve adaptar regras  pré-estabelecidas a um novo contexto de enunciação, sempre cambiante.

Por isso, entender o nonsense como uma forma simples[12] ou um cronotopo[13], seguindo a opinião de Jean-Jacques Lecercle, nos permite procurar sua ocorrência em autores de diferentes épocas, cujas obras trabalham com a noção desse sentido sempre mutante. Lecercle escreve:

 

Nonsense, therefore, is more than a language game: it is a chronotope. The term comes from Bakhtin, where its meaning is so wide as to defy precise definition: it denotes the intrinsic connectedness of temporal and spatial relationships that are expressed in literature, something like literary forms of intuition. This, for Bakhtin, is the locus for the relationship between the work of art and reality, wich goes beyond simple mimesis. I would like to explore the anti-realist, but also anti-formalist intuition that the concept express: there is no simple reflection of reality in the work of art, but there is no linguistic clousure either.[14]

 

Esses conceitos / categorias (formas simples, cronotopo)  nos possibilitam ver o nonsense não como uma estrutura geral de uma obra literária, ou como um gênero literário, mas como um tipo particular, peculiar de escrita que faz parte de uma categoria estética mais ampla: o cômico.

Para tanto, parto de algumas hipóteses.

A primeira delas que há uma estrutura lexical, semântica e sintática, que acompanha o nonsense, da mesma forma que outras manifestações do cômico.

Também acredito que o nonsense deriva de formas orais, como de resto a maioria das outras formas literárias, daí o caráter dialógico, dramático em muitas das obras onde o nonsense se manifesta.

Essa intensa dialogação faz do leitor um participante, ao mesmo tempo que propicia a quebra da ilusão, sendo portanto uma manifestação, em última instância, metalinguística.

A interrupção do contar é próprio da narrativa oral, onde o contador muitas vezes insere comentários, adendos, numa estrutura de coisa dentro da coisa (mîse en abîme), que está presente em narrativas como As mil e uma noites, em Joyce etc.

A meu ver é justamente aí que entra a atmosfera do onírico no nonsense, pois essa multiplicação, esse espelhamento  embaça os limites entre o ficcional e o real, nos remete novamente ao problema da mimese.

A interferência do narrador, portanto, talvez seja um dos traços que mais tenha interessado outros escritores, o traço dos escritos nonsense de Carroll e Lear que fez com que eles fossem "modernos". Aqui, a presença da paródia (canto paralelo)[15] também nos remete a essas camadas textuais que se sobrepõe.

 

AS FACES DO SENTIDO

Num primeiro momento trataremos de um movimento mais geral da obra do escritor irlandês, para em seguida fazer alguns comentários sobre a peça "Esperando Godot" e a manifestação do nonsense, considerado como um subgênero do cômico.

O cômico e o nonsense, em Beckett, revertem a natureza mais direta e superficial do riso,  fazendo com que este passe a ter uma nova qualidade, que num primeiro momento pode nos parecer estranha a ele: a sua tristeza fundamental.

Estamos um passo além do descompromisso do riso direto, para entrarmos num universo assim descrito por Federico Fellini:

 

Nada mais triste do que o riso... Por isso, a intenção dos autênticos escritores da comédia - quer dizer, os mais profundos e honestos - não é, de modo algum, unicamente divertir-nos, mas abrir despudoradamente nossas cicatrizes mais doloridas para que as sintamos com mais forças. Isto pode ser aplicado a Shakespeare e a Molière tanto quanto a Terêncio e a Aristófanes.[16]

 

Agora, estamos diante de um tipo de cômico de grande extensão dramática. Trata-se de algo próximo ao que Pirandello chamou humorismo, que pode ser equiparado ao nonsense presente na obra de Beckett.

Vejamos o que nos diz Umberto Eco, sobre Pirandello:

 

Enquanto o cômico é a percepção do oposto, o humorismo é o sentimento do oposto. (...) Se exemplo de cômico era uma velha caduca que se enfeitava toda como uma adolescente, o humorismo impunha que se perguntasse também porque a velha agia dessa maneira.

Nesse movimento eu já não me sinto superior e distante em relação à personagem animalesca que age contra as boas regras, mas começo a identificar-me com ela, sofro seu drama e minha risada se transforma num sorriso. [17]

 

Por fim, podemos dizer que o nonsense em Beckett participa daquilo que Clément Rosset definiu como:

 

O riso trágico, que significa que se tira prazer do acaso e que se celebra, pelo riso, sua aparição, é então inteiramente estranho ao universo do sentido, das significações e das contra-significações que podem aí se desenrolar: indiferença para com o sentido, mas também para com o não-sentido, que basta para diferenciá-lo em profundidade de todas as outras formas de riso. A maior parte dos filósofos descreve, come feito, o riso como conseqüência de um contraste que se desenrola entre o sentido e suas próprias contrariedades: assim G. Deleuze em A lógica do sentido, que assimila o humor estóico ao humor inglês do nonsense (do mesmo modo que Lewis Carroll põe em presença, numa mesma superfície sig-nificante, as expressões de "tábua de multiplicar" e "tábua de comer", do mesmo modo Crisipo pode ensinar: "Se tu dizes algo, esse algo passa pela boca; ora, tu dizes uma carruagem, logo uma carruagem passa pela tua boca."[18]

 

Passemos, agora, à obra do escritor irlandês Samuel Beckett.

Um homem, diante de um enorme prato de comida, come afoito como um animal. Faz barulhos estranhos. Solta um demorado arroto. Começa a peidar e vai para o banheiro. De repente pára e diz o seguinte:

 

O essencial é comer a cagar. Prato e penico, penico e prato, esses são os dois pólos da vida.[19]

 

O ciclo da existência beckttiana está então completo: o riso que se aprofunda, refletindo a trágica dimensão do ser humano; ou se invertermos a ordem dos acontecimentos, a dimensão trágica convertida em riso.

Esse parece ser o movimento circular, tautológico e ambíguo muitas vezes, mais geral da obra de Beckett, sua camada mais aparente que é refletida nos vários níveis da obra literária: da trama narrativa ou dramática, até os enunciados e palavras.

No intuito de nos mostrar os vazios da existência, o escritor retira o peso da trama, reduzindo a linguagem a um vocabulário-base, ao que ela tem de essencial, que se repete indefinidamente com o intuito de criar um oco no discurso, corroendo os sentidos das palavras.

O que Beckett propõe é uma constante  reflexão sobre a experiência da perda e da ausência, sobre a morte. Ele retesa o fluxo, o tempo narrativo-dramático, de uma forma angustiadora e quase insuportável, e concomitantemente cria compartimentos cômicos, jocosos, de humor negro, de fina ironia e de nonsense, onde o leitor se oxigena, toma fôlego, para esperar o próximo golpe.

Esse riso meio amargo, causado pela consciência de que estamos rindo de nossa própria carência, é sentido pela obliteração dos limites entre o viver e o estar morrendo em vida, é o que constitui o substrato básico da agonia da obra de Beckett.

Essa voz, que fala desse centro catalisador, cria a multiplicação da narrativa em outras[20], intercala outras vozes à sua. Assim, as estórias que o (s) narrador(es) conta (m) ao leitor e a si mesmo (s) realizam a fruição da alteridade, o lance de dados que nos leva para fora da partida perdida. O que sobra em Beckett é sempre o zero a zero, o empate no fim do jogo.

Por que, poderíamos nos perguntar, Beckett opta por tais personagens à beira do fim, ruínas do homem? Por que os insere nesse vazio nada alentador, nessa angústia devastadora do real?

Assim o faz para realizar a fundo seu projeto estético: "Minha pequena exploração é essa zona inteira do ser humano posta de lado pelos artistas como coisa inaproveitável",[21] subtraindo do "nada" a matéria de uma vida. Nada é mais real que nada, diz o autor em Malone Morre.

Assim também se entende o esforço para criar uma aparente pobreza da linguagem, através da repetição de palavras, do jogo de dizer e desdizer. O escritor torna sua narrativa mais acessível ao leitor, ao mesmo tempo o faz mergulhar no labirinto do pensamento circular, tautológico.

Em diapasão a esse movimento mais geral da obra (o retrato dos mínimos nadas que espelham os vazios da existência), a mão de Beckett pincela habilmente, aqui e ali, quadros menos cinzas, mas não mais alentadores.

O nonsense, em Beckett, não constrói uma vertigem do riso, não dilata o corpo além de si mesmo, ele é a antecâmara do trágico. Gera um riso pela metade, profundo e pesado como o é nos grandes autores cômicos. Nele, há a identificação/a compaixão do leitor, o que o coloca dentro do alcance significativo daquilo que Pirandello nomeou humorismo.

Na literatura de Beckett há um infinito jogo de espelhos. Os personagens sempre são sujeitos da imagem de si mesmos, se comprazendo naquele outro que se vêem. Por isso o exaustivo uso da primeira pessoa nas narrativas do escritor.

Mas mesmo dentro da devastadora falta de um sentido para a vida, os personagens encontram um motivo para seu tímido extravasamento do real, alcançando, assim, o êxtase zen no vazio de sua existência agônica.

    

ESPERANDO GODOT :  BREVE SÍNTESE DE UM SILÊNCIO

 

O trem. Não sei por que o tomei.

Desci. Mas não há

Para onde ir.[22]

 

Takuboku Ishikawa

 

        

Escrever conduziu-me ao silêncio. Entretanto, devo continuar... Estou diante de uma falésia, e é preciso avançar. Impossível, não é? Porém, pode-se avançar. Ganhar alguns miseráveis milímetros...[23]

 

                   Samuel Beckett

 

 

     Começo essa parte do ensaio, citando trechos de uma carta de Samuel Beckett, para Michel Polac, sobre os possíveis significados da peça Esperando Godot (1949):

 

Eu não sei mais sobre essa peça do que alguém que consiga lê-la com atenção. (...) Tudo o que consegui saber, eu mostrei. Não é muito. Mas me basta, é o suficiente. Diria até que estaria satisfeito com menos. 

Quanto a querer encontrar em tudo isso um sentido maior e mais elevado para levar consigo depois do espetáculo, junto com o programa e as guloseimas, não vejo interesse nisso. Mas talvez seja possível. 

Eu não estou mais lá, nem estarei jamais. Estragon, Vladimir, Pozzo, Lucky, o seu tempo e o seu espaço, eu não pude conhecê-los um pouco senão afastando-me bem da necessidade de compreender. Eles talvez devam prestar contas a você. Que se virem. Sem mim. Eles e eu estamos quites.[24]  

 

A ação da peça é reduzida a quase nada. Beckett concentra-se em alguns poucos personagens, duplos uns dos outros. O jogo de palavras passa a ter mais importância do que a trama dramática.

A estrutura repetitiva, tanto temática quanto semântica, é a essência do clima nonsense da peça. Falamos de uma estrutura tautológica, que se multiplica ad infinitum, gerando uma circularidade que faz com que o sentido deslize, cada vez mais, para o "beco sem saída" do discurso.

Ao lado dessa estrutura em circular, outro elemento nonsense do texto é o próprio encadeamento da ação, das cenas e das falas dos personagens. Beckett trabalha, aqui, basicamente com a expectativa do leitor, acostumado ao fato de uma ação desencadear outra, a partir de nexos lógicos, e assim sucessivamente, tudo tendendo a um final, a um desfecho.

Na contramão disso, em Esperando Godot, temos um outro tipo de  estrutura semelhante aos textos orientais, assim descrito por Borges, quando ele fala sobre o budismo:

 

Chegando ao Japão, a doutrina se ramifica em diversas seitas. A zen é a mais famosa. Ela apresenta um método novo para se chegar à iluminação, que só funciona depois de muitos anos de meditação. Não se trata de uma série de silogismos. Antes, chega-se a ela bruscamente. É preciso intuir a verdade no momento exato. O método chama-se satori e consiste num fato brusco que vai além da lógica. Sempre pensamos em termos de sujeito e objeto, causa e efeito, lógico e ilógico, uma coisa e seu contrário. É preciso ultrapassar essas categorias. Devemos, segundo os doutores do zen, chegar à verdade mediante uma intuição brusca, uma resposta ilógica. O neófito pergunta ao mestre o que é Buda. O mestre responde: "O cipreste é a horta."[25]

 

Esse é exatamente o clima da peça em questão. Beckett empurra as palavras para o vazio ou "flutuação" do sentido, para que o leitor tenha essa súbita compreensão, que se instaura além ou aquém da lógica.

Presente na peça, também, o nonsense situacional, ou que o chamarei de "compasso de espera". Aqui, espera-se em vão a completude do sentido (semântica) ou de uma palavra, e seus supostos encadeamentos, ou de uma situação dramática em si, como é o caso da cena que encerra o primeiro ato e se repete no final da peça:

Vladimir: Então, vamos embora?

Estragon: Vamos.

Permanecem imóveis.[26]

 

Todos os recursos que estamos enumerando concorrem para o clima nonsense da peça, ao mesmo tempo apontam para um projeto estético de Beckett: se não adianta procurar entender a existência, só nos resta calar, mergulhar no silêncio, no vazio do sentido.

Por isso, o que se encontra na obra de Beckett é uma eloqüência inversa, construída em cima da pobreza vocabular, da escassez das palavras, que ao serem repetidas ficam vazias de sentido.[27]       

Ao mesmo tempo que o escritor empurra a linguagem para o silêncio, empurra também o sentido para a ausência de sentido, o racional para o ilógico, a "realidade" para o "onírico". Aí, as linhas mestras do nonsense em Beckett.

George Steiner dirá que a repetição é uma espécie de  índice musical, sendo resultado da destreza que o escritor tem de ir de lá pra cá, num ritmo de troca parente do pastelão. Ressalta que há "fugas de diálogo em Esperando Godot - embora a palavra diálogo, com sua implicação de contato eficiente, seja penosamente a palavra errada para usarmos aqui - que se aproximam muito na literatura corrente da retórica pura."[28]  Vejamos um trecho da peça:

 

Vladimir: Temos nossas razões.

Estragon:  Todas as vozes mortas.

Vladimir:  São como um sussurro de asas.

Estragon:  De folhas.

Vladimir:  De areia.

Estragon:  De folhas.

Silêncio.

Vladimir:  Falam todas ao mesmo tempo.

Estragon:  Cada uma para si mesma.

Silêncio.

Vladimir:  Na verdade  segredam.

Estragon:  Murmuram.

Vladimir:  Resmungam.

Estragon:  Murmuram.

Silêncio.

Vladimir:  Que é que elas dizem?

Estragon:  Falam da vida delas.

Vladimir:  Não lhes basta terem vivido.

Estragon:  Não podem fugir a falar disso.

Vladimir:  Não lhes basta estarem mortas.

Estragon:  Não é suficiente.

Silêncio.

Vladimir:  É como um rumor de penas.

Estragon:  De folhas.

Vladimir:  De cinzas.

Estragon:  De folhas.

Longo silêncio.[29]

 

Ainda sobre esta questão, o mesmo Steiner diz que há uma modulação, como na música, em diferentes intensidades e extensões, nos silêncios que pontuam a literatura de Beckett. Esses silêncios não são vazios. "Há neles, quase inaudível, o eco das coisa não-ditas."[30]

 

À GUISA DE INCONCLUSÃO: NOS LIMITES DO SILÊNCIO

O grande momento da peça, o clímax, a apoteose do nonsense, o apogeu do absurdo, é o momento em que Lucky "pensa", quando seu chapéu é colocado em sua cabeça, por Vladimir. É quase como tirar o coelho  cartola. Entramos num universo infantil, mágico por excelência.

E penso que só essa cena já bastaria para que chamássemos Esperando Godot de uma peça nonsense, porque a cena é uma espécie de síntese, de resumo das preocupações estéticas do escritor relacionadas aos limites do sentido.

Está tudo dito, claramente: não procurem um sentido, a vida é sem sentido mesmo, assim como o que pensamos que somos, nossas idéias, nossos comportamentos, nossas atitudes, tudo não passa de um "construto" social.

     Vamos a um pequeno trecho do monólogo de Lucky:

 

Pozzo  (...) Meia volta! (Lucky volta-se para o público). Pensa!

 

Lucky  (em toada monótona) Dada a existência, tal como é exposta nos recentes trabalhos públicos de Poinçon e de Wattmann, dum Deus pessoal quaquaquaqua de barbas brancas quaqua fora do tempo sem extensão que do alto de sua divina apatia, sua divina atambia, sua divina afasia, nos ama entranhadamente, salvo algumas raras exceções (...) por motivos ignorados mas que no futuro revelará e sofre como a divina Miranda juntamente com aqueles que por motivos ignorados mas que o futuro revelará se debatem em tormento em fogo cujo fogo e cujas chamas por pouco que ainda isto dure e quem o pode duvidar acabarão por fim por incendiar o firmamento quer dizer farão explodir o Inferno no céu tão azul por momentos ainda hoje e calmo duma tranqüilidade que nem por seu intermitente é desprezível mas não nos precipitemos e atendendo por outro lado ao fato de que em conseqüência das investigações incompletas não antecipemos das investigações incompletas (...)[31]

 

Para finalizar, cito mais uma vez George Steiner, referindo-se a Textes pour rien (1955), de Beckett:

 

(...) não podemos continuar falando de almas e corpos, de nascimentos, vidas e mortes; nós devemos continuar sem nada disso da melhor forma possível. [32]

 

TERCEIRO ESTUDO

 

TRÍPTICO INACABADO

(CORPO EM TRÂNSITO: DA TEORIA À CRIAÇÃO)

 

Onde cheira a merda

cheira a ser.

O homem podia muito bem não cagar,

Não abrir a bolsa anal

mas preferiu cagar

assim como preferiu viver

em vez de aceitar viver morto.

 

Pois para não fazer cocô

teria que consentir em

não ser,

mas ele não foi capaz de se decidir a perder o ser,

ou seja, a morrer vivo.

 

Antonin Artaud

 

 

Gostaria de expor, neste ensaio, o que chamarei de configurações do "corpo grotesco", usando como exemplo a aparição do "corpo escatológico" na obra da escritora Hilda Hilst, especificamente em dois textos da autora, na peça de teatro Auto da barca de Camiri, escrita em 1968, e na novela A obscena senhora D, de 1980.

Num primeiro momento do ensaio, passarei em revista algumas questões relacionadas à representação do corpo na literatura. Num segundo momento, farei uma pequena análise dos dois textos de Hilst. E num terceiro momento, me dedicarei a pensar a ficção de meu próprio corpo, num texto de criação literária.

Assim, teremos um possível quadro: um tríptico inacabado.

Dito isso, comecemos nossa viagem.

 

PRIMEIRO QUADRO

DO CORPO EM TRÂNSITO

 

Habitar um corpo é cair na história,[33] e portanto pertencer a um tempo e a um espaço. As representações do corpo, na arte, remetem a concepções de mundo sempre em trânsito, visto que o homem comunga em seu corpo essa contigüidade e contingência próprias do fluir temporal. Esse confronto do homem e do seu eterno devir, descrito por Vladimir Jankélévitch como o "ser não sendo",[34] nos remete ao que aqui denomino "corpo em trânsito".   

O corpo (seja ele social, individual, metafórico, pictórico, textual etc.) é o território de tensões sempre renovadas. Neste ensaio, relatarei, sucintamente, algumas dessas tensões presentes na representação do corpo em duas épocas distintas: na pós-modernidade e na Idade Média. Isso, porque penso que a escritora Hilda Hilst inscreve sua obra no trânsito entre essas duas possíveis representações do corpo, uma que chamarei "primitiva/arcaica" e outra contemporânea/pós-moderna.

A diferença entre essas duas concepções pode ser descrita em termos de uma representação do real mais alegórica, simbólica e mágica (no caso das culturas "primitivas"), onde o real e o mítico se interpenetram, onde o humano comunga em seu corpo sua dimensão animal e divina. 

Outra modalidade de representação (vinculada à cultura pós-moderna) pode fazer o que chamo "assepsia do real", ou para usar as palavras de Nelly Richard:

 

La impassibilidad de estas imágenes anuncia que el recuerdo traumático de la violación a los derechos humanos há ido perdiendo gradualmente intensidad, hasta fundirse en la sedimentada indiferencia del olvido pasivo de una ciudad de todos os días.[35] 

 

     Aqui, temos novamente a questão do corpo e da morte vinculada à sua instância temporal, a memória. Esse apagamento da memória cumpre o papel de tornar o real asséptico, de modo que a representação toma lugar do real em si, apagando seus traços de tragédia e desespero para torná-lo limpo, como se fosse possível alçá-lo fora do tempo, e portanto fora do ciclo de vida/morte da existência humana.

Neste momento, nos aproximamos da interpretação da cultura pós-moderna feita por Jean Baudrillard, quando ele fala da "morte do real":

 

Extermínio significa que nada resta, nenhum traço. Nem mesmo um cadáver. O cadáver do Real não está apenas morto (como Deus está); ele pura e simplesmente desapareceu. Em nosso próprio mundo virtual, a questão do real, do referente, do sujeito e seu objeto, não pode mais ser apresentada.[36] 

 

Esse é um dos traços da representação do corpo/morte, na cultura pós-moderna, que nos interessa. Hoje, temos um processo contínuo de "de-simbolização" da representação do real.

O corpo, por sua vez, torna-se pura "representação", virtualidade, perdendo seu caráter vital de produtor de realidades outras, para se inserir na realidade como "simulacro" do corpo. Ele não se investe mais do caráter mágico do simbolismo do corpo arcaico, porque o corpo, atualmente, é pobre de mutações significativas, embora por ele perpassem muitos signos. O corpo se esvaziou de seu simbolismo mágico-mítico, arcaico, para ser preenchido pelos simulacros do real:

 

Por toda a parte, a miragem do corpo é extraordinária. É o único objeto sobre o qual se concentrar, não como fonte de prazer mas como objeto de solicitude desvairada, na obsessão do fracasso e da contraperformance, sinal e antecipação da morte, à qual ninguém sabe mais dar outro sentido senão o da prevenção perpétua. O corpo é afagado na certeza perversa de sua inutilidade, na certeza total de sua não-ressurreição.[37]

 

Mas há ainda um trânsito possível entre os dois tipos de representação que estamos discutindo. Penso mais uma vez em Baudrillard, quando vislumbra, no seio da sociedade capitalista, o paysan (campesino), remetendo-nos a uma possível representação "medieval" do corpo:

 

Na ordem tradicional, no caso do camponês, por exemplo, nenhum boqueio narcísico, nenhuma percepção espetacular de seu corpo, mas uma visão instrumental/mágica, induzida pelo processo de trabalho e intercâmbio com a natureza[38]

 

O que importa aqui é precisamente essa visão mágica, alegórica e simbólica do corpo. Corpo esse que não participa da "assepsia do real" de que já falamos, mas se insere num tempo circular, mítico, um tempo de circulação intensa, como na Idade Média[39]. Daí que Michel Maffesoli afirme que "Um corpo social, qualquer que seja, guarda a memória de sua errância original."[40]

O passo seguinte é ver como essa metáfora da errância pode ser usada para descrever o "corpo grotesco-escatológico" como um conceito que participa dessa errância metafórica. Para tanto, cito Mikhail Bakhtin: 

 

O traço marcante do realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, a transferência ao plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual e abstrato.[41]

 

Esse trânsito entre a matéria e o espírito é justamente o que está em pauta nos textos de Hilda Hilst que serão aqui analisados. Também encontraremos a confluência da vida e da morte, traço da concepção grotesca do mundo: "A morte está sempre relacionada ao nascimento, o sepulcro ao seio terreno que dá à luz."[42]

Tomando por base a cultura da Idade Média, na interpretação de Bakhtin, podemos dizer que o corpo grotesco-escatológico "opera" uma reestruturação do cosmos da verticalidade (divino, mítico, mágico) à horizontalidade (humano, animal):

 

Sublinhemos que o corpo do homem reúne em si todos os elementos e todos os reinos da natureza: animal, vegetal e propriamente humano. O homem não é algo fechado e acabado; ele é inacabado e aberto: tal é a idéia mestra de Pico della Mirandola.[43]

 

     Esse trânsito, essa errância representativa do corpo grotesco-escatológico, que sobrepõe contraditórios, que reúne no homem sua dimensão animal e divina, é o que dá o caráter singular à obra de Hilda Hilst.

     Finalizo esta parte do ensaio, com um gancho para a parte seguinte, com uma provocação político-escatológica. Para tanto, cito um termo citado por George Steiner,[44] que está intimamente relacionado com a interpretação que Hilda Hilst faz da História.

Este termo, de que Steiner fala, foi usado para descrever Auschwitz e Treblinka, sendo, segundo o autor, hediondamente exato e alegórico: 

 

Arschloch der Welt ( cu do mundo)

    

 

SEGUNDO QUADRO

O CORPO ESCATOLÓCICO EM HILDA HILST

 

O odor da criatura nos põe na pista de uma divindade fétida. 

    

Emile Cioran

 

 

Ai Senhor, tu tens igual a nós o fétido buraco?

    

Hilda Hilst

 

 

     Para analisar a obra de Hilda Hilst, procurei pensar um conceito/categoria que me devolvesse uma sucessão de questionamentos outros que estruturam o pensar no texto da escritora. Esse conceito que elegi é a escatologia, que etimologicamente tem dois sentidos: tratado acerca dos excrementos (Skatoslogos) ou doutrina das coisas que deverão acontecer no fim do Mundo (Eskhatoslogos), na Teologia.[45]

Esse conceito é fundamental na obra de Hilst porque ao redor dele é que orbitam outras questões fundantes e fundamentais para toda a literatura da escritora.

Ao questionar os porquês da existência do homem na Terra, Hilst revitaliza o corpo e toda a matéria da qual ele é constituído: desde a víscera, os buracos (o corpo é definido, no Bhagavad-Gita, como uma "chaga de nove aberturas"), até as sensações e os sentimentos.

Em 1970, no prefácio do primeiro livro de prosa da escritora, Fluxo-floema, o crítico Anatol Rosenfeld já aponta para o trânsito significativo entre as duas escatologias, dizendo que na ficção Hilst encontrou o lugar por excelência para desdobrar, pela linguagem, a complexidade da existência humana:

    

Na linguagem nobre e austera de sua poesia Hilda Hilst não poderia dizer toda a gama do ente humano, tal como o concebe, nem seria capaz de, no palco, 'despejar-se' com a fúria e a glória do verbo, com a 'merdafestança' da linguagem, sobretudo também com a esplêndida liberdade, com a inocência despudorada com que invade o poço e as vísceras do homem, purificando-o com 'dedos lunares' para elevar o escatológico ao escatológico, visto nesta obra mesmo as trevas e o 'porco' - 'sou um porco com vontade de ter asas', diz Ruiska - se carregam de sentido religioso.[46]

 

Ao revitalizar o corpo, pela elevação do "escatológico ao escatológico", sempre por meio de um pensar e de um pensar-se até o extremo, Hilda Hilst alcança uma intensidade da palavra que é rara, mesmo entre os raros.

Assim, a escritora ousa ir além de qualquer conceito definidor de uma busca, subvertendo todos os limites do puro e do impuro, porque persegue não apenas uma dimensão do além-humano, desses fins últimos de qualquer ser vivente (o segundo sentido da escatologia), mas mescla a esse pensar-se em profundidade, um outro pensar-se que está mais colado aos contornos do corpo (escatologia no primeiro sentido), para daí, desse lugar único, observar a transparência das coisas.

Assim é que a escritora pode desconcertar o leitor, mudando o "tom" da conversa às vezes tão abruptamente que ele já não sabe onde acaba o assombro do trágico, e onde começa a possibilidade do riso.

Atentar a essa mistura entre os dois gêneros, o cômico e o trágico, e portanto entre as diferenças de registro alto e baixo da linguagem, é encarar a obra de Hilst não apenas como uma desesperada busca de compreender o inominável, o indizível, mas ajustá-la a um outro alicerce que se apóia numa metafísica cotidiana.

Ao passar de um sentimento a outro, a escritora foge da tentação de apenas descrever apenas o vasto, o nobre, os abismos (que seriam atributos do sublime), para chegar à satisfação de se comprazer também com que é pequeno, alegre e jovial, com o que satisfaz os olhos. Hilst alça o que é considerado inferior no homem, ou o homem inferior (que na literatura grega é atributo do cômico) ao ELEVADO (que é atributo do trágico).

Quem seriam estes personagens da escritora, que ao mesmo tempo participam dessa elevação trágica e dessa "inferioridade" cômica? Os personagens da escritora são seres sempre à margem, vincados no árido terreno mental que é o pertencer ao EXCESSO, mas ao mesmo tempo buscam integrar-se no cotidiano, no dia-a-dia, nos hábitos de todos os seres humanos. E esse salto do excesso,[47] que é atributo da hybris trágica, à incorporação dos traços mais humanos é que nos dá um retrato do que a escritora busca em sua arte.

Essa oscilação entre o estar "apartado", o ser "diferenciado" de outros seres humanos, tem um ponto de tensão ou distensão que nos dá um humano composto de traços mais largos: o homem político, o social, o grotesco, o perverso, o escatológico etc.

Para dar conta de todas essas faces da história de um homem, para nos dar um retrato mais completo dele, a escritora desliza nessas conformações mentais e corporais. Quanto mais traços o rosto de um homem contiver, mais ele se espelha no Criador, e mais Este dele se compraz.

E é justamente neste trânsito entre o humano, o animal e o divino; entre o trágico e o cômico; entre os registros alto e baixo da linguagem que Hilda interpõem o "corpo grotesco-escatológico", como uma espécie de fonte que espelha o desejo humano de transcendência, ao mesmo tempo que lhe mostra sua condição de matéria perecível.

A primeira aparição do termo "escatologia" na obra de Hilst é na peça Auto da barca de Camiri, escrita em 1968, mas só publicada em 2000. A peça segue a estrutura das peças medievais, como outras do teatro hilstiano. Temos aqui um "auto", tipo de peça do medievo, em versos, feita para comemorar uma data religiosa. Os personagens, da mesma forma que no teatro medieval, são alegóricos. Eles não têm nome (juiz velho, juiz jovem, passarinheiro, trapezista, agente e o Homem), sua profissão é seu nome, a autora escreve a certa altura da peça.

O Homem é comparado a Cristo, sendo também uma espécie de mártir revolucionário[48] (segundo a autora, ele pensava em Che Guevara). A figura desse Homem é assim descrita por Renata Pallottini:

(...) a autora, pelo que se depreende, mantém presente, em várias oportunidades, a figura desse HOMEM/MÁRTIR/ REVOLUCIONÁRIO, que pode ser um desconhecido, ou Che Guevara, ou Cristo, sempre aquele, nas suas palavras, que prometia 'o maná', a Solução, a Verdade, a Felicidade, a Justiça. Ela mantém esse personagem porque defere a ele a possibilidade, terrena ou transcendental, da salvação. Esses Homens, não importando como são chamados, trazem a esperança, são inocentes e desinteressados, mas todos eles acabam, por ser destruídos, mortos, numa renovação do sacrifício do Deus cristão. A solução, obviamente, não é otimista.[49]

 

Na obra de Hilst, já em 1968, não há a retórica cristã da vitimização, de que nos fala Santiago Castro-Gómez, mas uma espécie de curto-circuito significativo entre os dois significados da palavra utopia, o eu-topos (o bom lugar) e o ou-topos (lugar nenhum).[50]

O Auto da barca de Camiri é uma alegoria da passagem, da viagem, do trânsito entre o mundo real e o idealizado. O Homem, que é o motor, a viga mestra da peça, nunca aparece. A grande discussão é se ele existe ou não. Seu corpo é volátil, quase invisível, escapa de nomeações, alça-se nos limites do indizível.

Enquanto isso, presos à matéria (corpo) e à matéria (merda), duplo sentido usado pela autora na peça, os outros homens - os juízes e os outros personagens discutem sobre a possível existência do Homem. O Juiz Jovem diz do lugar onde estão: "Aqui é certamente o fim do mundo. Ou o inferno, não sei." (p. 132); e mais adiante o Juiz Velho diz: "Com esse calor todos fedem. Os homens fedem." (p. 132) 

Entramos, então, no "corpo escatológico" propriamente dito. O começo da peça, uma longa conversa entre os dois juízes, acontece com eles se trocando em cena. Essa nudez inicial, a conversa dos dois sobre a boca/cu, comer/cagar, são o prólogo para todo desenvolvimento posterior da ação, que será sempre construída no trânsito entre o real e o imaginário/mágico. 

O grande legado de Hilda Hilst, nesta peça, é nos dizer que o mito (Cristo, Buda, Lênin, Hermes Trimegisto, Ulisses, Orfeu -     p. 150) é o motor das ações humanos. O ser humano tem necessidade de produzir, no tempo e no espaço, a ficção de sua própria história. Mas se habitar um corpo é cair na história, como foi escrito no início deste ensaio, a realidade histórica do homem lhe devolve seu fluir temporal, seu caminhar para a morte. Daí a constante reaparição do corpo escatológico, que perpassa toda a peça.

Assim, acima de todas as injunções político-sociais-religiosas, o homem tem pouco a se conviver com a realidade física de seu corpo. A única certeza que tem é saber-se mutável e perecível. E que ele se veja trágica ou comicamente, não importa, ele será cotidianamente um corpo grotesco-escatológico:

 

Juiz Jovem: Tem razão. Tem razão. Os homens são seres escatológicos. Esse tema é ótimo para discorrer. Veja. (vira-se para a platéia) Escatologia, certamente os senhores saberão o que é: nossas duas ou três ou mais porções matinais expelidas quase sempre naquilo que convencionalmente chamamos de bacia. Enfim (curva a mão em direção à boca e estende em direção ao traseiro), esse entra e sai. Para vencer o ócio dos senhores que dia a dia é mais freqüente, não bastará falar sobre o poder, a conduta social, a memória abissal, o renascer. É preciso agora um outro prato para o vosso paladar tão delicado.  (pp. 132-133)  

 

Passemos, agora, para um outro momento da obra de Hilda Hilst, em que a questão do corpo grotesco-escatológico retorna, agora com uma virulência lingüística, a meu ver, sem precedentes na literatura brasileira. Refiro-me à novela A obscena senhora D, publicado em 1980.

Farei um pequeno resumo da estória, depois citarei um trecho da novela, com o qual finalizo esta parte do ensaio. Escolhi esta forma de apresentação porque penso que o texto, neste caso, terá maior eficácia do que qualquer análise.

Depois da morte de Ehud, seu marido, Hillé, a senhora D (D de derreleição, abandono, desamparo) fica escurecendo no vão da escada. Recorta peixes pardos de papel e os coloca num aquário, fecha sua casa para que não haja intrusão dos moradores da vila. Por isso Hillé é "obscena", ela quer estar "fora da cena", porque para ela "a vida foi uma aventura obscena de tão lúcida".

A lucidez de Hillé é o mergulho no excesso de procurar entender tudo o que está além dos limites do homem, "isso de vida e morte, esses porquês"; e sua lucidez se converte no grotesco de nos "mostrar" a sua cara nua, o seu corpo farpado de tantas incongruências, por isso sua linguagem é muitas vezes crua, incluindo aí palavrões, impropérios, heresias das mais chocantes.

Enquanto Hillé permanece no mundo dos vivos, tentanto entender os porquês, Ehud, no sem-tempo da morte, procura trazê-la para a "realidade" do corpo, da matéria, para a contingência do tempo. Ele quer "inseri-la" no mundo dos vivos, pede-lhe um café, faz com que ele relembre a infância que passaram juntos, diz que ela precisa ter um homem jovem que a faça esquecer sua obsessão de compreender. Ehud quer dar à sua mulher um centro gravitacional, um lugar seguro de onde ela possa encarar, com mais calma, sua vida e o mundo. Ehud quer mantê-la num eixo, para que lucidez e loucura não se tornem uma única coisa.

Hillé é chamada de "sapa velha", de porca, pelos moradores da Vila, e as únicas visitas que recebe bem é o Porco-Menino (um Deus selênio?), e uma "porca que escapuliu do quintal de algum" e com quem passa a viver. Aqui, temos o trocadilho caro a Hilda (corpo/porco), que perpassa sua obra, da mesma forma que god/dog, em "Com meus olhos de cão"[51], a escritora remete-nos à uma concepção arcaica da deidade, visto o número de deuses-animais das mitologias ocidentais e orientais, ao mesmo tempo Hilst reinscreve, reinstala o corpo em sua animalidade.

No fim da novela, em conversa com o Porco-Menino, ele assim define Hillé: "um susto que adquiriu compreensão".

Este trecho representa muito do que Hilda Hilst pretendeu com sua obra. A escritora nunca excluiu de seu campo de reflexão questionamentos que estão, para alguns, "fora dos limites do corpo", do porco nosso de cada dia.

Termino, então, esta segunda parte do ensaio citando o longo trecho de A obscena senhora D, momento esse de retomada das questões até aqui colocadas, espécie de síntese narrativo-poética do corpo que se repensa no tempo e no espaço, no limite da consciência do real.

Vamos, então, texto:

 

"(...) Ai Senhor, tu tens igual a nós o fétido buraco? Escondido atrás mas quantas vezes pensado, escondido atrás, todo espremido, humilde mas demolidor de vaidades, impossível ao homem se pensar espirro do divino tendo esse luxo atrás, discurseiras, senado, o colete lustroso dos políticos, o cravo na lapela, o cetim nas mulheres, o olhar envesgado, trejeitos, cabeleiras, mas o buraco ali, pensaste nisso? Ó buraco, estás aí também no teu Senhor? Há muito que se louva o todo espremido. Estás destronado quem sabe, Senhor, em favor desse buraco? Estás me ouvindo? Altares, velas, luzes, lírios, e no topo uma imensa rodela de granito, umas dobras no mármore, um belíssimo ônix, uns arremedos de carne, do cu escultores líricos. E dizem os doutos que Tua Presença ali é a mais perfeita, que ali é que está o sumo, o samadhi, o grande presunto, o prato.

me chamaste, Ehud?

Senhora D, querida Hillé, murmuras hein? os segredos da carne são inúmeros, nunca sabemos o limite da treva, o começo da luz, olhe, Hillé, não gostarias de me fazer um café? os intrincados da escatologia, os esticados do prazer, o prumo, o todo tenso, as babas, e todas as tuas escamosas escatologias devem ser discutidas com clérigos, confrades, abriste por acaso o jornal da tarde? Não. Então não abriste. Pois se o tivesses feito terias visto a fome, as criancinhas no Camboja engolindo capim, folhas, o inchaço, as dores, a morte aos milhares, se o tivesses feito terias visto também que não muito longe daqui um homem chamado Soler teve suas mãos mutiladas, cortadas a pedaços, perdeu mais de quatro litros de sangue antes de morrer, e com ele morreram outros golpeados com cacetetes, afogados em recipientes contendo água imunda e excrementos, depois pendurados pelos pés, estás me ouvindo, Hillé? matam, torturam, lincham, fuzilam, o Homem é o Grande Carrasco do Nojo, ouviste?

Sim.

Então, Senhor, Menino Precioso, ouviste Ehud também? Meu nome é Nada, faço caras torcidas, as mãos viradas, vou me arrastando, capengo, só eu e o Nada do meu nome, minhas mesquinharias, meu ser imundo, um Nada igual ao Teu, repensando misérias, tentando escapar como Tu mesmo, contornando um vazio, relembrando. Tens memória? Nostalgia? Um tempo foste outro e agora és um que ainda se lembra do que foi e não o é mais? Tiveste inestimáveis idéias, soterradas hoje, monturo e compaixão? Alguém se dirigiu a Ti com tais pedidos? Estes: olhe, Hillé, toma esta peneira e colhe água do rio com ela, olha, Hillé, aqui tens a faca, corta com ela a pedra, pedaço por pedaço, depois planta e vê se medra, olha, Hillé, aqui tens o pão mas só podes comê-lo se dentro dele encontrares o grão de trigo inteiro, e de quem o colheu a própria mão, olha Hillé, aqui tens a tocha e o fogo, engole, e assim veremos o que se passa nos teus ocos.

Olha Hillé a face de Deus?

onde onde?

olha o abismo e vê

eu vejo nada

debruça-te mais agora

só névoa e fundura

é isso. adora-O. condensa névoa e fundura e constrói uma cara. Res facta, aquieta-te.

E agora vejamos as frases corretas para quando eu abrir a janela à sociedade da vila:

o podre cu de vocês

vossas inimagináveis pestilências

bocas fétidas de escarro e estupidez

gordas bundas esperando a vez. de quê? de cagar nas panelas

sovacos de excremento

buraco de verme no oco dos dentes

o pau do porco

a buceta da vaca

a pata do teu filho cutucando o ranho

as putas cadelas

imundos vadios mijando no muro

o pó o pinto do socó o esterco o medo, olha a cancãozinha dela, olha o rabo da víbora, olha a morte comendo o zóio dela, olha o sem sorte, olha o esqueleto lambendo o dedo o sapo engolindo o dado

o dado no cu do lago, olha, lá no fundo

olha o abismo e vê    (...)"[52]

 

TERCEIRO QUADRO

 

MÍNIMO TRATADO DO CORPO

 

Morrer é uma arte, como tudo o mais.

                                                                                    

Sylvia Plath

 

 

 

Vejo o abismo do meu corpo. Ele se faz onde menos espero. Latência ainda. Onda. Infinitos poros. Meu corpo não é meu corpo. Ele reverbera, alucinada onda onde os sons do espaço ecoam. Grito. Infinito. Sempre movência. Fúria. Meu corpo é estilhaço de meu corpo. É roupa rota. Errância.

Vejo o abismo do meu corpo. Me repito. Movimento mudo. Linha. Curva. Reta. Expansão e movimento. Expansão do espaço. O espaço do meu corpo erra. Sempre à procura do meu corpo. Depuração do tempo. Três luas rotas sobre o sol de agosto. Lenta agonia. Devassidão do espaço. Lírio. Início. Ilíria baça.

Mito de ser um corpo. Ereto e alado. Começando o finito. Comendo o fim e o início, meu corpo se dilata além do corpo. E a roupa? Há muito se despiu do corpo. Sempre sigo meu corpo. Amputo-me de mim para alcançar a ausência. E só me sou na ausência do movimento. Êxtase estático de pertencer a um corpo. Disfarço o que se move, engano o estranho cotidiano...

E se meus outros corpos a mim se unissem, como seria? Como seria se essa morte lenta e lúcida se fizesse num repente? Meus corpos não são meus corpos, embora eu também tenha corpos, pêlos, poros, ilusões e desespero. Cinza que me fizeste, amor e morte, súbito sopro do nada.

Eu não me sei, sedento ser alado. Eu não me sei, úmida luminescência essa língua que me lambo. Eu não me sei, mesmo assim sonoro sexo. Gemido ausente. Revolução dos astros. Anarquia dos sentidos. E no fundo de tudo, nada de ausência, só o nítido som dos pássaros.

Meu corpo não é meu corpo ainda. Ele se dilata mais, dilui o tempo e espaço. Ele se edifica. Meu corpo se difrata, reflui, refluxo. Meu corpo regurgita meu corpo que engulo. Antes ágora onde qualquer corpo tinha o poder da fala. Meu corpo masca o corpo do meu corpo. Ruminância nítida. Nulidade em si e no que se alastra. Ritmo do corpo. Pulsação. O coração dilata, o pulmão se exalta e expande o corpo até o ar que me rodeia.

Roda do tempo esmagando tudo, o que meu corpo era, hera se espraiando sobre esse muro da ausência. Recordação do espelho onde me vejo todo dia outro. E nem aí me sou. E nem aí meu corpo é. É só imagem refletida esse corpo que vejo. Nem sentimento há. Nem o escuro poço, fosso, profundo abismo onde me deito exausto.

Meu corpo é a presença estranha e intrusa disso que em mim se fez, fazendo o que almeja ao fixo. Mas não me deixo ao léu. Nem à deriva de meu corpo. Procuro a âncora. Mistura cínica disso que quer, mas não quer o estreito. O fixo. Esteira de meu corpo, tecido fino esgarçando a pele. E a substância última que dá vida a meu corpo?

Terrível armadilha. Teia. E uma ávida aranha esperando a morte. Agonia lenta. Meu corpo só se conforma ao informe, à morte. Ele se ausenta. Sem longas despedidas. Sem noites nuas. Meu corpo nunca foi o meu corpo. Meu corpo grita: espanto de pertencer a outro corpo. Magia negra isso de morte e vida. Corpo morrendo eu vejo. E o braço estendido para o abraço. Meu corpo não é meu corpo.

Apenas vejo o abismo.

 

Meu corpo não é um corpo. Conceito. Ele se dilata, transborda os limites do corpo. Amálgama de nadas, meu corpo só sobrevive no antes do gozo, onde depois morre. Estático movimento. Fala muda. Mudança em curso. Meu corpo não é meu corpo. Travessia do oposto. Ele se instaura no informe, no líquido som da minha fala. Muda a cada instante e no entanto morre. Meu corpo transmuta o sentido do conceito do corpo. Ele se instala em outras formas mais terrenas. Meu corpo não é um corpo, ele se entrelaça sólido a outros corpos, que também são formas informes de um conceito.

Tudo em mim muda. Tudo em mim se renova. Como cada dia. Mas o ar asfixiante do mundo continua insistindo em entrar em minhas narinas. Mas o ar é como essa substância quase inexistente que nos dá vida, a água, mas o ar ainda não é líquido. Ele precisa do calor do sol para se subtilizar em outra substância que enfim será o líquido. Minhas narinas se fecham depois de alguns momentos, enquanto agonizo no instante de pertencer ao ar.

Meu corpo é o tempo fruindo em mim, mas não o tempo. É o espaço em que existo, mas não o espaço. Meu corpo não é meu corpo. Porosidade infinita de elementos, átomos, moléculas. E no fundo de tudo, um sopro, expiração mais lenta em que me construo outro.

Construo meu corpo em mim, em outros. Me tatuo. Me excedo. Saio de mim para que possa me ver mais claramente. Meu corpo é apenas indício. Início do que não fui. Meu corpo estanca. Pára. Meu copo não é meu corpo. Olho no espelho e vejo:

 

É outro corpo que meu corpo habita.

 

 

 


QUARTO ESTUDO

 

POR UMA ESTÉTICA DA RESISTÊNCIA

 

Estudar o mecanismo de uma obra de arte, ver de perto suas engrenagens, seus menores detalhes, pode proporcionar certo prazer especial, mas um prazer de que não podemos gozar sem renunciar ao gozo dos efeitos pretendidos pelo artista. Na realidade, considerar as obras de arte de um ponto de vista analítico é submetê-las, de algum modo, àqueles espelhos do templo de Esmirna, que só refletiam as mais belas imagens, deformando-as.[53]

                                                                

Edgar Allan Poe

 

 

Entendo poética da resistência como um fazer literário que persistirá além da contingência de seu tempo. Isso porque, inscrevendo-se nesta mesma contingência, apresenta suas contradições, suas tensões significativas, e aponta, no presente, para um "futuro do passado". 

Essa noção de uma circularidade temporal, de um continuum quebradiço do tempo será um dos alicerces conceituais mais importantes para as discussões que farei aqui.

O artista da resistência, constrói seu "idioleto", termo que tomo emprestado da lingüística, que significa um dialeto próprio, uma língua fundante, original (de origem). Cria um estilo único, diferenciado dos modos de escrever de outros escritores. Assim, por exemplo, Hilda Hilst escreve o seu hilstiano, e essa singularização da escrita, fará com que sua obra resista ao tempo, mesmo que continue sendo lida por um número restrito de leitores.

Vejamos, agora, o que nos diz Jeanne Marie Gagnebin, cuja análise do conceito benjaminiano de origem, mesmo que aplicado à superestrutura, ao tempo histórico, cabe perfeitamente ao que estamos comentando em relação às obras artísticas da resistência.

Falando do livro de Benjamin sobre o barroco e das Teses, a autora comenta:

 

A noção de origem (...) deve dar conta de duas exigências distintas, porém ligadas: de um lado, estabelecer uma temporalidade intensiva do evento histórico em oposição à extensividade arbitrária do tempo cronológico, de tal modo que a própria estrutura do presente permite a atualização/intensificação de um evento passado (daí a importância do conceito de mônada); de outro lado, quebrar a linha do tempo cronológico, operar cortes no discurso ronronante e nivelador da historiografia tradicional. Nas Teses, Benjamin utiliza o conceito de origem no sentido literal - o que não deixa de ser irônico em relação a qualquer metafísica das origens - de Ur-sprung (salto primeiro), notadamente na famosa Tese XIV  onde o Ursprung está ligado ao Tiger-sprung (salto do tigre no passado) e ao Sprung (salto) dialético da revolução. Trata-se sempre de saltos e de recortes inovadores que fazem explodir a cronologia tranqüila da história oficial; interrupções que querem, igualmente, parar este tempo indefinido e infinito (anedota dos franco-atiradores que destróem os relógios na noite da revolução, tese XV) para permitir ao passado esquecido ou recalcado, de surgir novamente (...) de ser assim retomado e salvo no atual.[54]

 

Essa longa citação constituirá o fundamento da discussão que farei aqui em relação à prosa de Hilda Hilst, e também à poética de Baudelaire, pois em ambas as obras, o tempo tem um papel preponderante.

Resistência, por outro viés, pode ser entendida como um fazer artístico que vai contra, ou que interpela, discute, relativiza o que se faz em seu próprio tempo. Ir contra a maré, neste caso, significa fugir das pressões do mercado, por exemplo, do bom gosto literário, do beletrismo etc.; e também ir contra os "modismos", "vanguardismos" e afins.

Não existe, numa poética da resistência, uma ânsia da novidade. Esse eterno deslumbramento que muitos artista têm de fazer algo que "choque", que "desestruture" os padrões. Acredito que essa necessidade de ser "diferente", de ser sempre "novo" se instaura, na quase totalidade das obras deste tipo, na superfície da obra.

Neste casos, de pseudos pós-modernismos, pós-vanguardismos e outros ismos, o artista, antes de encontrar seu "estilo", sua "marca" própria, anseia o ser "diferente" só por si só, apenas como um fim, e não como um meio de chegar a si mesmo, a sua estética própria, o que só acontece quando ele alcança uma "diferenciação" ou uma "individuação", para usar um formulação junguiana.

Desse modo, essa ânsia de ser "novo", "diferente" geralmente deságua numa corrente de obras outras que também se pretendem diferentes, mas que acabam sendo a mesma coisa: uma simples estetização de procedimentos ditos vanguardistas[55], inovadores, mas que morrem em si mesmos, não alcançando uma extensão significativa, não havendo a projeção da obra além de seu tempo.

Para elucidar esta questão, cito Gore Vidal, num comentário sobre as obras de Dostoievski, Conrad e Tolsoi:

 

(...) embora seja verdade que eles alteraram a forma do romance, sua arte tampouco foi produto de experiências intencionais com a forma: foi, antes, o resultado de sua capacidade de transfigurar o trivial e de torná-lo único, e isso devido ao que eles eram: homens geniais que não estavam obcecados pelo que Goethe uma vez chamou de "desejo excêntrico de originalidade". Ou, nas palavras de Saul Bellow: "O gênio, sem fazer força, é sempre vanguarda. Se se afasta da tradição, não é por capricho ou porque segue um plano, mas por necessidade íntima."[56]

 

     Resistência, num último enfoque, é esse eterno retorno do tempo, é toda poética que não se opõe ao antigo, ao velho, que não se pretende pós-vanguarda (um novo que se gruda apenas à superfície da obra), mas que traz em si todos os tempos (esse presente que instaura "o futuro do passado", como escrevi acima), os problemas intemporais do ser humano de um modo vital, essencial e sempre renovado pelo enfoque da palavra e pela forma de contar. Uma poética da resistência funda, inaugura. 

 

À GUISA DE INTRODUÇÃO

Partindo da leitura de alguns textos de Walter Benjamin, discutirei algumas questões relacionadas à literatura moderna e  pós-moderna, que considero fundamentais para analisar a obra narrativa da escritora Hilda Hilst como uma poética da resistência.

A parte de análise, propriamente dita, para não alongar demais este ensaio, ficará restrita ao conto  "Rútilo nada", publicado em 1993.

Começo, retomando algumas formulações de Walter Benjamim sobre Brecht e sobre Baudelaire, cuja obra pode ser vista como uma ponte entre a modernidade e a pós-modernidade.

A fugacidade e o transitório marcam  a contingência da experiência cotidiana, que se deve principalmente pela aceleração temporal e proliferação das experiências possíveis, que é o principal traço da modernidade presente na obra de Baudelaire.

Na prosa da escritora Hilda Hilst, além dessa contingência temporal, ressalto a "barroquisação"[57] da narrativa, gerada, dentre outras coisas, na camada mais aparente do texto, por uma estrutura semelhante à montagem cinematográfica[58] e por uma proliferação imagética em cascatas.  

 

DIGRESSÃO NECESSÁRIA: PRIMEIRA CENA

Uma comentário feito por Benjamin sobre Brecht, cabe perfeitamente à obra narrativa de Hilst. Ele fala que as canções (no teatro de Brecht) "(...) têm por principal função interromper a ação. Aqui o teatro épico assume, portanto - exatamente o princípio da interrupção (...) um procedimento que lhes é, nos últimos anos, corrente a partir do cinema e do rádio, da imprensa e da fotografia. Falo do procedimento da montagem: o que é montado interrompe o contexto em que está montado."[59]

Benjamin fala sobre a interrupção, fato pelo qual Brecht chama seu teatro de épico, vemos que o mesmo acontece com os textos narrativos de Hilda Hilst. Eles geralmente começam, como na epopéia, no meio da coisa (in media res), e a cada interrupção há uma mudança de ritmo, como em Brecht (canção em Brecht = poemas em Hilst). Por esse procedimento, a cada corte, entramos num novo movimento da fábula/história[60], somos jogados em espirais de núcleos narrativos. Daí decorre o fluxo da narrativa hilstiana.

Cabem aqui duas ressalvas.

Primeira:

Se a função desta técnica de montagem serve, segundo Benjamin para "despojar o palco de seu sensacionalismo temático"[61] (é o que Brecht chama "efeito de distanciamento"), em Hilda Hilst tem uma função diametralmente oposta, servindo para manter a tensão dramática do texto, para fazer o leitor se emocionar, "sentir" com o personagem.

Segunda:

A análise benjaminiana insere o teatro de Brecht numa corrente da produção, e do consumo de massa (por isso a equivalência com o cinema, fotografia e rádio), próprio da intenção do crítico que procura, em alguns de seus textos, ver como essas manifestações de massa inteferiram no conceito de representação, na mimese.

Se a análise de Benjamin cabe para a obra de Brecht, para a obra de Hilst, e de outros autores da época do crítico, como Joyce, vale apenas a relação de interferência entre os procedimentos de expressão da matéria ficcional na literatura e no cinema, a confluência destas duas artes, quanto ao conceito de representação.

O uso que autores como Joyce e Hilst farão da técnica da montagem é que se diferencia, pois eles querem mergulhar o leitor no fluxo narrativo, a partir de cortes bruscos, e da alteração do ritmo narrativo, enquanto a intenção de Brecht é distanciar o espectador.

Estamos falando, portanto, de um traço estilístico mais estrito, singular, que se traduz enquanto uma poética da resistência, como uma forma de representar a experiência.

 

VOLTANDO A BAUDELAIRE: SEGUNDA CENA

                           

(...) tirar o eterno do transitório.

 

A modernidade é o transitório, o fugitivo, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra o eterno e o imutável.[62]

 

Charles Baudelaire

 

A forma de relatar a experiência também será a preocupação de Benjamin quanto a Baudelaire. Temos que ressaltar que o poeta "pensa" de um modo peculiar, embora sua obra ainda esteja inscrita na tradição, quanto à forma de representação.

Baudelaire não ousa formas novas de representação, mas sim apresenta questões pertinentes a esse novo modo de organização da experiência vivencial no tempo. Os temas, em Baudelaire, é que são realmente a marca de sua poética da resistência

Quanto à forma, autores como Rimbaud e Lautréamont, contemporâneos do poeta, foram muito além de Baudelaire, no que se refere à ousadia da representação.

Agora retomo um pouco da análise de Benjamin da obra de Baudelaire. Vou me deter num único aspecto da análise de Benjamin que será de suma importância para o que me proponho discutir neste ensaio. Trata-se do problema do tempo.

Benjamin vê em Baudelaire, essencialmente, um poeta da cidade que se multiplica feito um organismo vivo. Um poeta que vê o tempo passar diante de teus olhos, e sente a impossibilidade de parar este tempo, como vemos na famosa análise do poema "A uma passante".

Além disso, podemos citar a grande admiração de Baudelaire pela obra de Edgar Alan Poe, onde o problema da aceleração temporal, gerada pelo crescimento das cidades, também entra em questão, como no conto "O  homem das multidões".

Na contramão disso tudo, penso que existe um reverso da medalha em relação a esse problema do conceito do tempo, como é comum acontecer em Baudelaire.

Refiro-me à preocupação de Baudelaire com o tempo, relacionado com a alteração da consciência, presente, por exemplo, nos estudos sobre o haxixe e o ópio[63]; e em alguns textos de poesia e prosa em que o poeta fala sobre a bebida, geralmente o vinho.

Gostaria de chamar atenção para o fato de como esse tempo exterior, acelerado ou dilatado, é interiorizado pelo poeta. Aqui temos o que penso ser um traço realmente revolucionário da obra de Baudelaire, pois ele está fazendo, em última instância, uma discussão sobre a percepção do tempo, do modo como ele é apreendido pelo ser humano.

As drogas, como as emoções fortes, as sensações etc. alteram a noção do continuum temporal, de modo que não temos mais uma sucessão, mas sim um amálgama, uma sobreposição de tempos.

Essa questão presente na obra de Baudelaire, será a questão inaugural, fundante do conto "Rútilo nada", de Hilda Hilst. É o motor a partir do qual a narrativa se desenrola: o flash da morte do amado, Lucas, cegando a consciência temporal do narrador, Lucius. E será justamente essa experiência que desestruturará a linearidade da narrativa.  

Aqui vejo realmente o salto mais importante presente na obra de Baudelaire. A marca de sua poética da resistência, porque neste movimento o poeta se funde ao mundo, à realidade, deixando de ser observador passivo e frio.

Que Benjamin, Adorno e outros tenham chamado atenção para o fato de que o poeta francês, enquanto sujeito que observa, captar esse movimento de aceleração temporal das cidades acho louvável, mas penso que a real singularidade da obra de Baudelaire, singularidade essa que a projeta para o futuro, esteja justamente no fato de apontar esse amálgama entre os vários tempos em nossa consciência. 

Estou falando, em última instância, do patético e da compaixão, do movimento para o outro. Quando fala da passante, do albatroz/poeta, da velha que de tão feia assusta uma criança, Baudelaire está nos legando a identificação com o objeto poético, e portanto interiorizando a experiência do trânsito temporal.[64]

Nos escritos em que fala sobre a alteração da consciência, vejo o poeta preocupado, em primeiro lugar, com a perda da consciência, e com os malefícios e benefícios que isto pode trazer; mas num sentido menos restrito, vemos uma preocupação com uma "letargia" temporal gerada pelo próprio "ir vivendo".

"Tuer les temps"[65], neste caso, pode Ter uma dupla significação: perder tempo, vencer o tempo. Penso que o problema que se coloca aqui é o cerne de algumas anotações que o escritor faz sobre as figuras do flâneur  e do dandy, que são seres que acreditam estar "livres do tempo".

Mais do que simples  alegorias de seres à parte de uma sociedade que massifica o homem, essas duas personas criadas por Baudelaire são metáfora deste possível estar à margem da contingência temporal, considerando-se mais diretores/observadores do espetáculo da vida, do que propriamente atores.

A questão me interessa porque esses seres, alegorias de um tempo imóvel, participam do excesso (alegórico: visual, verbal etc.) no sentido em que estão livres das amarras da vida cotidiana. Eles pairam sobre o tempo, mas podem cair, pela compaixão, nesse mesmo fluxo temporal.

Os vários desdobramentos dessa questão, o tempo acelerado (exterior) e o tempo dilatado (interior) remetem num único movimento ao estrato social (a massa) e ao indivíduo (particular), enquanto consciência singular de sua própria finitude. Assim, tudo o que seja choque e sentimento leva o ser humano a uma dilatação temporal.

É exatamente essa a questão mais importante para compreendermos a obra de Hilst, e principalmente o conto que será aqui analisado. Primeiro, porque seus personagens são apartados do mundo (como as personagens alegóricas de Baudelaire), no sentido de serem diferenciados dos homens, e ao mesmo tempo mergulham em experiências-limite, no choque dos sentimentos fundos, e por isso participam dessas duas experiências temporais que citamos acima.

 

BREVE NOTÍCIA DE UMA AUSÊNCIA 

Na obra e Hilst vemos um progressivo "excesso" da linguagem e das estruturas narrativas. O primeiro livro em prosa da autora só foi escrito aos 40 anos, depois de vinte anos dedicados à poesia e ao teatro (oito peças), escrito entre 67-69. Quando começa a fazer prosa, a autora incorpora muitos elementos expressivos poéticos e dramáticos à narrativa.

Daí, advém, dentre outras coisas, um ritmo peculiar da narrativa hilstiana, entrecortada por diálogos dramáticos ágeis, uma aceleração - no corte cinematográfico - e uma lentidão/desaceleração do ritmo narrativo por causa das passagens altamente lírico-poéticas, chegando, muitas vezes, como é o caso de "Rútilo nada", a uma completa re-espacialização do texto, quando da inserção de vários poemas.

Isso gera a necessidade de uma forma peculiaríssima de leitura, ora devemos acelerar o ritmo da leitura, pela tensão dramática do texto, ora desacelerá-lo para entrarmos no fluxo poético, quando estamos diante do monólogo interior ou de poemas propriamente ditos.

Talvez essa seja a principal dificuldade de leitura da narrativa de Hilst, o que para muitos é uma complexidade "metafísica" enorme, um intransponível labirinto de pensamentos, a meu ver pode ser entendido como uma confusão/perda do fio e do ritmo narrativos, gerada por essa brusca mudança de ritmo.

No fim de tudo, a problema é mais uma questão de "como" ler o que se está lendo. Ler o texto de Hilst em voz alta, acredito, é a melhor forma de contato com ele. As citações, a linguagem rebuscada às vezes, a complexidade podem ser vencidas se conseguimos recuperar a "respiração" do texto, o seu ritmo, o seu fluxo. E isso só é possível se o lemos em voz alta, se nos aderimos à fala, à respiração dos narradores.

 

"RÚTILO NADA": PARA UMA POÉTICA DO INSTANTE

 

O BÊBADO - Não se esquecer que a embriaguez é a negação do tempo, como todo estado violento do espírito,  e consequentemente todos os resultados da perda do tempo devem desfilar diante dos olhos do bêbado, sem destruir nele o hábito de adiar para o amanhã sua conversão, até a completa perversão de todos os sentimentos e a catástrofe final.[66]

                                     

Charles Baudelaire     

 

     Entendamos o texto literário enquanto matéria artística como um amálgama de recortes de leituras feitas pelo escritor e sua expansão no tempo e espaço a partir do desdobramento em discursos que se interpenetram e se redimensionam em outras interpretações possíveis. Este seria o campo minado no qual o crítico recolhe os fragmentos da experiência e procura lhes dar as significações possíveis.

Aí, naquilo que chamarei de expansão textual, a imaginação do crítico se alarga, prescreve caminhos percorridos pelo escritor, tenciona o arco do tempo mirando, no presente, o futuro do passado. Recolhe leituras e experiências, confrontando-as.

Depois, menos regrados pela memória, nos defrontamos com o  texto, agora, caudaloso e real como matéria da palavra. Estamos diante de nós e do mundo, diante da palavra que cria um mundo. Inexato, breve  e talvez morto. Mas há a respiração ainda, há a possibilidade de mergulharmos inteiros no fluxo da palavra.

Então o texto é nele uma fonte de identificação com a intensidade primeira da experiência reconstruída. E se refaz nele enquanto se distende na obra do escritor e suas infinitas multiplicações de sentidos. A expansão significativa do texto está na ausência de um fechamento interpretativo da palavra. Ela se expande e se refaz da cinza de seu próprio corpo.

Pensemos, agora, num texto e vejamos como ele se expande e se reelabora em outros numa dinâmica própria; ao mesmo tempo em que refaz o percurso de uma escrita que se relê.

Falemos, então, de "Rútilo Nada"[67], que começou a ser escrito pela escritora Hilda Hilst em 1986, tendo sido terminado depois de longos anos de espera, em 1993.

Afora o dado de a escritora ter rasgado as tantas páginas de palavras que pensou não se coadunarem com a sua concepção de integridade do texto, devemos pensar na potência desestruturante de um texto curto como esse (15 páginas).

E temos que pensar, mais ainda, nessa INTENSIDADE maiúscula e múltipla onde ele desliza.

    

Que tempo é esse o da experiência nesse texto?

Ele é todos  e nenhum, pois é inteiro espiral da consciência.

 

Em "Rútilo Nada", Hilda Hilst joga os personagens nesse redemoinho do sentimento, que faz com que Lucius Kod, o narrador, sempre esteja no limite de seu corpo, no limite de sua dimensão humana da consciência que empurra o ser humano, que o faz alçar outros vôos. 

Daí a dimensão da hybris trágica do texto. "Rútilo Nada" é uma  fotografia, uma radiografia de um ser humano no limite de seu corpo, de sua consciência, de seus sentimentos. Um homem, Lucius, que é lúcido demais. Um homem que luta com sua própria consciência, com o desespero do amor-paixão rasgando seu corpo feito a lâmina de uma faca.

Por isso, pode-se dizer que neste texto, eleva-se o homem ao entendimento extremo de si mesmo. Por isso, no fim do conto, Hilst parodia um outro:[68] Tudo o que é humano me foi estranho. (p. 28)

Hilst reverte, dessa forma, qualquer coerência possível daquele que se alça ao insabido de si.

Ele, Lucius Kod, é ao mesmo tempo excremento do corpo (em alemão, em gíria bem vulgar, "kod" significa "bosta, merda") e lúcido da consciência/da alma. Neste personagem a escritora retoma um conceito muito caro a ela, que é a escatologia: o tratado sobre os excrementos, e, sem sentido bíblico, o tratado acerca do fim dos tempos/do homem.

Lucius é arremedo de si, imagem desfigurada refletida na boca trêmula de seu genitor. A voz de Lucius é o pai as pessoas do enterro a filha e Lucas, o seu amado que lhe conta, numa carta antes do suicídio, a crueza de seu destino humano.

E além, os muros dos poemas de Lucas, essa tentativa de compreender a possível ventura de possuir um corpo.

    

Há um acúmulo de significados tomando conta das coisas neste instante, as coisas estão crescendo de significado.       (p. 25)

 

A consciência de Lucius é múltipla: ela abarca a ancoragem significativa do mundo. Os discursos sobrepostos da realidade, o pai banqueiro, a guerra do Vietnã, o desejo da carne de homens e mulheres. Mas não entende a si mesmo sobretudo, por isso descasca a linguagem, saboreia significados e os acha amargos.

Só a morte de Lucas o faz reintegrar-se em si mesmo:

 

Hoje à noite já não serás mais meu mas dessa fina e fecunda, Essa madrasta que engole tudo, Essa que toma e transmuta, essa escura e finíssima senhora, umidade, frescor, o grande ventre sem decoro recebendo o mundo, migalhas, excremento tripas teu adorado corpo luzente. (p. 17)

 

A morte do amado é atada a essa carniça descrita pelo poeta Baudelaire em um de seus poemas sobre o amor.[69] Ao mesmo tempo a morte é a transmutação da experiência em pura intensidade do instante.

Transitório, alguém disse, tudo passa, irmão, Hilst escreve neste texto que é um denso e intenso poema em prosa. Essa é a baça verdade de Lucius que sustenta sua memória terrena do mundo.

O desespero de Lucius diante da morte de Lucas, a sua catástrofe do espírito, é a ferida mais funda de onde ele olha o mundo, e é ao mesmo tempo seu rosto refletido no vidro  do caixão. Imagem de abertura do conto.

Ele é imagem da ruína do Nada, mas ainda se lança no brilhante olho do amado. Seria essa, a metáfora do título "Rútilo Nada"? Ou a escuridão final da consciência intensa e dilacerada?

Mas voltemos às sombras, onde aquele outro, o amado, se move. A fala de Lucas é pautada por uma agonia dura e ressentida. Ele descreve, numa suposta carta a Lucius, a experiência da dor e o refinamento a que pode chegar a crueldade. Os homens, que o estupram, são profissionais sadios e assépticos, fazem direito o serviço, a mando do pai de Lucius. Diante do sangue, da dor e do medo, a imagem do pai de Lucius é enorme e tosca paisagem:

 

Eu estava de bruços e suspendi a cabeça para ver. A boca do teu tremia. / Ele beijou minha boca ensangüentada. Eu sorri. De pena da volúpia.

 

A Lucius resta a vastidão do sentimento, o começo de um outro "eu" intenso e devastado. A Lucas, resta o revólver sobre a mesa, a conversa definitiva com a dama escura (p.24), e o estranho legado de tentar entender a dureza dos muros:

 

Muros intensos

E outros vazios, como furos.

Muros enfermos

E outros de luto

Como o todo de mim

Na tarde encarcerada

Repensando muros.

 

A alma separada de ti

Vai conquistar a chaga de saltar.

 

(pp. 26-27)

 

Excerto de "Rútilo Nada" (1993), conto de Hilda Hilst

 

                                   O amor é duro e inflexível como o inferno.

 

                                               Tereza Cecepa y Ahumada

 

 

 

 

O

s sentimentos vastos não têm nome. Perdas, deslumbramentos, catástrofes do espírito, pesadelos da carne, os sentimentos vastos não têm boca, fundo de soturnez, mudo desvario, escuros enigmas habitados de vida mas sem sons, assim eu neste instante diante do teu corpo morto. Inventar palavras, quebrá-las, recompô-las, ajustar-me digno diante de tanta ferida, teria sido preciso, Lucas meu amor, meus 35 anos de vida colados a um indescritível verdugo, alguém Humano, e há tantos indescritíveis Humanos feito de fúria e desesperança, existindo apenas para nos fazer conhecer o nome da torpeza e da agonia. Mas indigno e desesperado me atiro sobre o vidro que recobre a tua cara, e várias mãos, de amigos? de minha filha adolescente? de meu pai? ou quem sabe as mãos de teus jovens amigos repuxam meu imundo blusão e eu colo a minha boca na direção da tua boca e um molhado de espuma embaça aquela cintilância que foi a tua cara. Grito. Gritos finos de marfim de uma cadela abandonada tentando enfiar a cabeça na axila de Deus. De uma cadela sim. Porque as fêmeas conhecem tudo da dor, fendem-se ou são desventradas para dar à luz e eu Lucius Kod neste agora me sei mais uma esquálida cadela, a morte e não a vida escoando de mim, musgos finos pendendo dos abismos, estou caindo e ao meu redor as caras pétreas, quem são? amigos? minha filha adolescente? meu pai? teus jovens amigos? Caras graníticas, ódio mudo e vergonha, palavras que vêm de longe, evanescentes mas tão nítidas como fulgentes estiletes, palavras de supostos éticos Humanos:

           

            Constrangedor                       Louco              Demente

            Absurdo        Intolerável

 

Ducente Deo começo estes escritos deveria ter dito. Tendo Deus como guia, começo estes escritos deveria ter dito. Estou caindo mas sou erguido, aliali ali a porta eles dizem, não, é melhor por aqui, meus olhos olham o chão, sapatos pretos de verniz movendo-se afoitados sobre as tábuas largas, babas de mim, lenços cheirando a lavanda me comprimem a boca, alguém diz o carro deve estar ali mais adiante, meus olhos olham outro chão, folhas na manhã de ventos, outros sapatos e outras vozes coitado o que foi hein? tá demais branco o homem, olha ali, saiu de um velório, quem é que morreu? foi o filho dele foi? foi a mãe? saiam da frente, a gente precisa achar o carro, mas onde é que está o carro? ele está desfigurado, olha olha

Desfigurado meu pai na madruga, o roupão de seda, listas negras, que elegância meu pai na madrugada, o roupão creme de seda e finas listas negras, a boca trêmula apagada no giz da própria cara: então anos de decência e de luta por água abaixo e eu um banqueiro, com que cara você acha que eu vou aparecer diante de meus amigos, ou você imagina que ninguém sabia, crápula, canalha, tua sórdida ligação, e esse moleque bonito era o namoradinho da minha neta, então vocês combinaram seus crápulas, aquele crapulazinha namorou minha neta para poder ficar perto de você. gosta de cu seu canalha? gosta de merda? fez-se também de mulherzinha com o moço machão? ele só pode ter sido teu macho porque teve a decência de se dar um tiro na cabeça, mate-se também seu desgraçado mate-se

Onde os começos? Onde? Farpas pontudas emergindo do corpo dos conceitos. Antes o conceito redondo. Liso. Aquela pedra à beira do riacho, aquela que carregam para casa. Tenho que saber dos começos. Os atos não podem ficar flutuando, fiapos de paina desgarrados daquela casca tão consistente, a casca era firme, abriu-se, o delicado foi se desfazendo, círculos, volutas, assim pelos ares, desfazido. Posso deduzir que escapei da casca consistente, que eu estava encerrado ali, não, que o meu corpo era o fruto da paineira, todo fechado, e num instante abriu-se. Abriu-se por quê? Porque já era noite para mim e aquele era o meu instante de maturação e rompimento. Porque fui atingido pela beleza como se um tigre me lanhasse o peito. O salto. O pânico. O que é a beleza? Translúcida como se o marfim do jade se fizesse carne, translúcido Lucas, intacto, luz sobre os degraus ocres de uma certa escada na eloqüência da tarde

pai, esse aqui é Lucas

A sombra da barba um remoto azul, areia-anil num copo d'água

ele gosta de muros, pai

como?

você ficou tão pálido... o que foi, pai?

Minhas frases emboladas, não nada tudo bem só estava concentrado hein? não não sim sou jornalista, sim, comentários políticos, resenhas sobre ensaios, às vezes literatura sim, poesia? não nunca, poesia já é mais complicado

Lucas faz História na universidade, pai, mas adora poesia, escreve poemas sobre muros

você quer dizer os poemas nos muros?

não não, falo dos muros nos meus poemas

Move-se. Olha os meus livros. O indicador e o médio alisam as lombadas. Vejo-o de costas agora, é sólido, crível, nada de angélico ou inefável, e um novo ou talvez antigo e insuspeitado Lucius irrompe, dois escuros e contraditórios, aguçados e leves, violentos e sórdidos

 

 

 

Transitório, alguém disse, tudo passa, irmão. Escarros na calçada, dedos-garra nos meus antebraços, estico o pescoço e levanto a cabeça para os céus, escuros volumosos uma imensa cara, a boca escancarada de nuvens pardas, abro minha própria boca e grito LUCAS LUCAS

ah era o filho é?

foi o filho que morreu é?

Fulcros ensangüentados, sustentáculos de mim oscilam de lá pra cá, pedaços de frases, a redação do jornal

batalhões de elite treinados, é um artigo do Chomsky sim, transcreve isso:

mulheres penduradas pelos pés com os seios arrancados, a pele do rosto também arrancada

mas onde? onde?

El Salvador, meu chapa

batalhões de elite treinados, e quem é que treina os filhos da puta?

os seios arrancados?

mas quem é que treina?

esse Chomsky é um lingüista?

Transitório, alguém diz, puro excremento diz o outro, eu tenho nojo de gente

ah... cara, são situações provisórias...

que beleza de artigo hein? o Chomsky é um dissidente americano quanto à questão do Vietnã, lembra-se?

ahn...

 

 

Beleza. O que era antes de ti a beleza para mim? O que era o nojo? Beleza...

aquele poema de Baudelaire "Une Charogne", você conhece, Lucas?

"Alors ô ma beauté! dites à la vermine

Qui vous mangera de baisers,

Que j'ai gardé la forme et l'essence divine

De mes amours decomposés!"

isso, isso

Hoje à noite já não serás mais meu mas dessa fina e fecunda, Essa madrasta que engole tudo, Essa que toma transmuta, Essa escura e finíssima senhora, umidade, frescor, o grande ventre sem decoro recebendo o mundo, migalhas, excremento tripas teu adorado corpo luzente             sem decoro, eu, um homem, suguei teu sexo viscoso e cintilante, deboche e clarão na lisura da boca, ajoelhado, furioso de ternura, revi como os afogados a rua do meu passo, a via       teu adorado corpo luzente, a boca espessa, Lucas Lucas, a madrasta não roerá teu dentes... dentes? Ah... ficam intactos...

mas o carro não está em lugar algum, mas então pega o teu carro, eu vou chamar uma ambulância, ele vai cair, vai desmaiar outra vez, não dá pra gente ficar segurando, deita ele aqui na calçada, deita

O céu formando legiões de espadas, Lucas, não sei se você leu sobre Cartago alguma vez, mas havia uma tradição cartaginesa que não permitia a separação de sogro e genro, um costume que não permitia que sogro e genro vivessem afastados, e um capitão do exército apaixonou-se por um jovem, tornaram-se amantes apesar do falatório, um era casado e tinha filhas e fez com que o amante se casasse com uma delas... você parece que não está me ouvindo, está onde?

tua filha vai sofrer, Lucius

alguém vai sofrer?

e não é ético

ético? que criterioso e maduro para os teus 20 anos, ético é descobrir-se inteiro livre como me sinto agora. minha filha, se pudesse compreender, compreenderia

nunca vai compreender. me ama.

Voltaram ao coração os cães de gelo. Ali. Postados. Guardiães. Os olhos embaçados de furor, as presas cintilando. Cães de gelo. Ou lobos de olhar formoso inundados de cio. Ou um só lobo, Lucius Kod, preso numa armadilha jamais pensada, que oco de si mesmo tentou criar-se novo? Cansado de sua própria oquidão tentou verter humores, refazer-se em lago, em luz, mas torcido de ociosidade construiu para seu corpo um barco exíguo cravejado de espinhos, verdes espinhos de um ciúme opulento, úmidos longos espinhos aguçando sua própria matéria de carne, carne de Lucius antes era mansa e tépida, brioso corpo de antes tão educado respondendo rápido a qualquer afago, de mulheres naturalmente, ah sim, naturalmente, mulheres com discursos de várias qualidades, umas de língua altiva rinchando política e sabedoria (os antagônicos tentando semelhança), espigadas leves, as blusas soltas traduzindo plena liberdade, idéias, corpos elásticos, ágeis, e quantas vezes na cama despencando, gemendo, dóceis como pequenos animais doentes, tremulas encharcadas se abrindo famintas de sua dura vara, cadê o discurso, o critério, a bacia de idéias, cadê pombinha, cadê?

às vezes você fala como se tivesse raiva das mulheres

é mesmo, Lucas? não tinha percebido

na hora da cama ninguém faz discurso. nós também não

Mulheres. Finíssimas jovens mulheres, perfumadas lânguidas, transparências sombreando coxas, tetas, um olho na minha boca, outro no dinheiro do meu velho. Banqueiro sim. E você não trabalha no banco dele, não? Jornalista, é?

Risadas. Meu pai: pederastas, vadios e vadias, escritorezinhos de merda, articulistas do meu caralho, você defende essa corja de apartados

pára, pai

viciosos, assassinos, miseráveis, e não me venha com discursos, com esse tipo de sensibilidade cretina, ou você pensa que a ordem se faz com choramingas, com coraçõezinhos partidos, com tremeliques, como é que você pensa que se faz uma fortuna, uma empresa de porte, um banco? trabalho e sagacidade

rapacidade, não se esqueça

filho da puta, eu que dei tudo o que você sabe, que paguei para que você fosse esse soi-disant culto, esse que destila idéias como se elas saíssem de um charco de podridão e de mentiras, como é que você pode provar que são eles que penduram as mulheres pelos pés, essa besteira toda que você repete nos seus artiguelhos

muito bem, pai, você acha que o Chomsky é um crápula também

Chomsky ou a puta que o pariu, então você não sabe que há interesses políticos nisso tudo, há vendidos, há nojentos da esquerda radical

e também nojentos da direita radical

isso é comigo?

pai, será que você não percebe que um homem lúcido treme de furor, de cólera, de nojo quando sabe que um artigo desses vem de fonte limpa

fonte limpa... como se você soubesse o que é isso

fale mais claro

mais claro é o que ando vendo, Lucas e você, afaste-se desse rapaz, me olha, Lucius, me olha, esse rapaz é o namorado da tua filha, o que é que você fala tanto com esse rapazola? amigos meus te viram várias vezes com ele nas ruas, nos bares

e então?

O rosto de meu pai é neste instante um tecido de púrpura enrugado e repulsivo, ofegante se aproxima de mim, torce minha camisa com seus dedos magros, o gesto é rancoroso e abrupto, o hálito de cigarro e hortelã é cálido sobre a minha cara.

Eu não sou o que sou, digo para mim mesmo, como se jogasse nenúfares num tanque de águas podres. Eu não sou o que sou. Iago também disse isso. Não há nenhuma Desdêmona por aqui, mas há os desatinados finais de Otelo, o verde de lascívia luminosa, verde em mim fervilhante de larvas, de pontiaguda fereza, olho essa cintilância que é a tua cara e percebo pouco, ou será que não te vejo inteiro. Quem és, Lucas? Inteiríssimo poeta, de fiel construção, de realeza até, severo

conceitos muito éticos - tua filha vai sofrer -

e eu não sou o que sou, sendo este que sou agora, devo dizer que umas cordas feitas de sangue e plasma me amarram a ti, estou inteiro úmido de cólera porque vi que os teus olhos olharam o muito supostamente viril atravessando a rua e que o teu olhar foi de cumplicidade e de desejo e que os traços do teu rosto não são mais daquele inteiríssimo poeta, são vincos pesados e solenes sim, mas de um reles prostituto

tensionado, Lucas?

por quê?

alguém atravessando a rua te olhou desejoso e perplexo, não foi?

não, não vi

Eu não sou o que sou, fico me repetindo, nem fêmea alguma e macho muito menos me colocaram aqui neste tempo onde estou, tempo desordenado, avessos de um rumo, grandes areias negras tumultuadas, cascalhos, brilhos

então não viu? trocaram olhares e um não viu o outro?

não, não vi

Como é o rosto do cinismo? E o da leviandade? Vou andando, ele um pouco à frente e eu atrás, por quê? Para tomar distância e ver se o acreditam sozinho pela rua e tenham assim a abordagem, para ver de início o olhar distraído daquele que passa, e em seguida o tropeçante, o fascínio, o sedoso voltar-se das mulheres, a perplexidade desejosa dos homens

incrível como te olham, não? Viu?

não, não vi

 

 

 

quer quer? quer água, moço?

agora ele está abrindo os olhos

já foram chamar a ambulância

alguém morreu e ele ficou assim?

quem morreu? foi o filho, foi?

a gente segue sempre os queridos que se foram

como é que a senhora disse, dona?

a gente vai com eles

com quem?

com os nossos queridos

vamos logo depois

à vezes demora

Te seguindo sigo apenas a mim mesmo. Quem foi que disse que o "cacarejo de sua aldeia lhe parecia o murmúrio do mundo"? Te sigo, Lucas, as faces estufadas me olhando estendido na calçada. O lustroso das caras. O baço das caras. As bocas pendentes soletrando palavras. Explosão de fúria quando vi a ambigüidade agarrada aos altos pomos da tua cara, Lucas, quando vi que não sabia da tua identidade, eras aquele que me mostrava o poema?

Muros escuros, tímidos

escorpiões de seda

no acanhado da pedra.

Escorpião de seda. Pulsando silencioso ali entre as frinchas. Ou eras o outro no quase escuro do quarto. Úmido. De seda. Tua macia rouquidão. Igualzinha à macia rouquidão de uma sonhada mulher, só que não eras uma mulher, eras o meu pensado em muitos homens e muitas mulheres, um ilógico de carne e seda, um conflito esculpido e harmonia, luz dorida sobre as ancas estreitas, o dorso deslizante e rijo, a nuca sumarenta, omoplatas lisas como a superfície esquecida de um grande lago nas alturas, docilidade e submissão de uma fêmea enfim subjugada, e aos poucos um macho novamente, altivo e austero, enfiando o sexo na minha boca

Viscoso. Cintilante. Pela primeira vez o meu olhar encontrava a junção do nojo e da beleza. Pela primeira vez, em toda a minha vida, eu, Lucius Kod, 35 anos, suguei o sexo de um homem. Deboche e clarão na lisura da boca.

Ajoelhado, redondo de ternura, revi como os afogados a rua do meu passo, a via.

 

 

 

Lucius,

os dois homens me tomaram como duas fomes, duas mandíbulas. Um clarão de dentes. Sorriam enquanto tiravam as camisas. Vagarosamente desabotoaram os botões. Cheguei a sorrir porque os gestos eram como que ensaiados, lentos... lentos... idênticos. Depois os cintos escuros, as fivelas de metal. Depois as calças. Imagine, dobraram as calças, acertaram os vincos, colocaram as calças no espaldar da poltrona. Pensei: eles estão brincando. E disse: vocês estão brincando. Sorriram. O olhar era afável. Meus pulsos amarrados atrás das costas.

muito bem, garotão, vai ficar manso pra tudo ficar mais fácil

começa chupando a minha pica enquanto o meu amigo te usa feito dona

vocês só podem estar brincando

pode chamar de brincadeira se quiser, garotão

Eu queria saber o porquê e quem mandou. E aí recebi um violentíssimo bofetão.

Comecei a sangrar pelo nariz.

Antes do derradeiro, antes da sombra, pensando naqueles muros que vi, no úmido deslizante sobre a pedra, na solidão dessa matéria feita por Deus, na minha própria solidão... Mulheres, homens, a mãe que me acariciava extasiada...

A futilidade de todos os olhares que um dia recebi, a futilidade de todas as falas que um dia ouvi... e agora as bocas molhadas sobre o meu peito. Detalhes? Um deles me espancava com a fivela do cinto até que o outro ejaculasse.

Bateram-me na boca também e beijaram minha boca esfacelada. Antes da sombra, Lucius, quero dizer da dor de não ter sido igual a todos. Minha alma velha buscava entendimento. Quero dizer da dor mas não sei dizer. Estou sangrando por todos os buracos.

o velho diz que ele seduziu o filho que é doutor

fizemos como o velho mandou: um pouco arrebentado mas nem tanto

disso ele não morre

gostoso o garotão

até que posso entender o filho do doutor

vamos. o velho vai passar por aqui. quer ver o serviço

Teu pai veio ver o serviço, Lucius. Saiu há pouco. A porta ficou entreaberta.

Sentou-se na beirada da cama. Passou a unha ao longo da minha espinha.

vai ter tudo comigo, moço. afaste-se do meu filho

Antes do derradeiro, antes da sombra, o revólver em cima da mesa, queres me perguntar o que sente alguém diante da dama escura? Sinto frio, Lucius. A parede aqui do quarto frente à mesa está toda manchada. As manchas formaram desenhos, figuras: a cabeça coroada de um velho. A coroa parece de flores. Um pássaro com fios enrodilhados no bico. Um menino sem cabelos olhando um quase-rio. O velho que eu seria se não escolhesse a morte? O pássaro que a minha alma pretendia? Eu mesmo, o de antes, contemplando o tempo-água que é e não é o mesmo e no entanto corre e sem te tocar te modifica inteiro? Há um acúmulo de significados tomando conta das coisas neste instante, as coisas estão crescendo de significado. A pedra prateada em cima da mesa... um amigo me trouxe lá dos Andes... não é só a pedra prateada que um amigo me trouxe lá dos Andes, é um mais sem nome, impossível de decodificar para você. Um livro de poemas que eu comprei numa livraria perto da universidade, não é mais um livro de poemas de Petrarca, ele pulsa, e o perfil do poeta no centro da capa brilha como a luz da tarde. Por que tudo brilha e é mais? Apenas porque me despeço? Quando nos beijamos naquela antiquíssima tarde, a consciência de estar beijando um homem foi quase intolerável, mas foi também um sol se adentrando na boca, e na luz azulada desse sol havia uma friez de água de fonte, uma diminuta entre as rochas, e beijei tua boca como qualquer homem beijaria a boca do riso, da volúpia, depois de anos de inocência e austeridade.

posso te tocar um pouco, menino?

Eu estava de bruços e suspendi a cabeça para ver. A boca do teu pai tremia.

Ele beijou minha boca ensangüentada. Eu sorri. De pena da volúpia.

 

                        I

 

                        Muros longínquos

                        Na polidura esgarçada dos sonhos.

                        Tão altos. Fulgindo iluminuras.

                        Muros de como de amei: Brindisi.

                        Altamura.

 

                        E muros de chegança. De querença.

                        Aquecidos. Anchos.

                        O tenro entrelaçado à tua fala:

                        Teu muro de criança.

 

 

                        II

 

                        Muros dilatados de doçura.

                        Romãs. Dálias purpúreas.

                        Irmãos adultos

                        Recostados na manhã de chuvas.

 

                        Muros do encantado da luxúria.

                        Fendas. Nesgas de maciez.

 

 

                        III

 

                        Muros prisioneiros de seu próprio murar.

                        Campos de morte. Muros de medo.

                        Muros silvestres, de ramagens e ninhos:

                        Os meus muros da infância. Esfacelados.

                        Muros de água. Escuros. Tua palavra:

                        Um mosaico de vidro sobre o rosto altivo.

                        Devo me permitir te repensar?

 

 

 

                        IV

 

                        Muros intensos

                        E outros, como furos.

                        Muros enfermos

                        E outros de luto

                        Como o todo de mim

                        Na tarde encarcerada

                        Repensando muros.

 

                        A alma separada de ti

                        Vai conquistar a chaga de saltar.

 

 

 

                        V

 

                        Muros agudos

                        Iguais à fome de certos pássaros

                        Descendo das alturas.

                        Muros loucos, desabados:

                        Poetas da Utopia e da Quimera.

                        Muro máscara disfarçado de heras.

                        Muros acetinados iguais a frutos.

                        Muros devassos vomitando palavras.

                        Muros taciturnos. Severos.

                        Como os lúcidos pensadores

                        De um sonhado mundo.

 

 

                        VI

 

                        Muros castos e tristes

                        Cativos de si mesmos

                       

                        Como criaturas que envelhecem

                        Sem conhecer a boca

                        De homens e mulheres.

 

                        Muros escuros, tímidos:

                        Escorpiões de seda

                        No acanhado da pedra.

 

                        Há alturas soberbas

                        Danosas se tocadas.

                        Como a tua própria boca, amor,

                        Quando me toca.

 

 

                       

                        VII

 

                        Muros cendrados.

                        De estio. De equívoca clausura.

                        Lá dentro um fluxo voraz

                        Dos sentimentos, um tecido

                        De escamas. Sangue escuro.

                        Lá. Depois do muro.

 

                        Criança me debrucei

                        Sobre a tua cinzenta solidez.

                        E até hoje me queima

                        A carne na cintura.

 

 

 

            Até um dia. Na noite ou na luz. Não devo sobreviver a mim mesmo. Sabes por quê? Parodiando aquele outro: tudo o que é humano me foi estranho.

 

 

Lucas

 

QUINTO ESTUDO

 

BABELIZAÇÃO E DESBABELIZAÇÃO (PARA UMA UTOPIA DO VIRTUAL)

 

 

Poema pictura loquens, pictura poema silens.[70]

 

 

Los hombres son figuras en el tiempo y el espacio y en cualquier momento, como corresponde a su posición en estas cuatro dimensiones, pueden ser localizados y datados. Pero con esto no basta. Como quinta coordenada se añade en el caso de los hombres y de todo aquello que experimentan y hacen, la determinación de su paso a través del universo simbólico, donde los hombres conviven. Representante manifiesto de esta dimensión es el lenguaje, esto es, los símbolos globales, complejos, humanos, diferentes de una sociedade a outra, que sirven, asimismo, para que los hombres se comuniquem y orienten. Pero a esta dimensión pertenecen también los contenidos simbólicos como, por ejemplo, los conceptos o lo que llamamos el "sentido" de las comunicaciones - dicho con brevedad, todo cuanto en el trato de los hombres pasa y es configurado por su "conciencia" - y también el significado actual de los conceptos "espacio" y "tiempo". Éstos como otros símbolos humanos no se dan de una vez por todas. Siempre están en movimiento, siempre haciéndose lo que son y siempre en devenir.[71]

 
 
A utopia não se separa do movimento infinito: ela designa etimologicamente  a desterritorialização absoluta, mas sempre no ponto crítico em que esta se conecta com o meio relativo presente e, sobretudo, com as forças abafadas neste meio. A palavra empregada pelo utopista Samuel Butler, "Erewhon", não nos remete somente a "No-Where", ou a parte-Nenhuma, mas a "Now-Here", aqui-agora.[72]
 

 

Gostaria de descrever, sem nenhum intuito de alcançar respostas definitivas, algumas questões vinculadas a uma de minhas eternas obsessões: o tempo. Conceito esse de fundamental importância para qualquer discussão sobre a cultura virtual. Em seguida, gostaria de multiplicar questionamentos relacionados a esse conceito-matriz, para que possa expor reflexões que me vêm diante do que se conceituou virtual.

A utopia, atada ao movimento vertiginoso e infinito do próprio tempo, nos ajudará a delinear os contornos da babelização e desbabelização, conceitos subjacentes a tudo o que aqui será dito. De um lado, a babelização pressupõe mecanismos de produção/recepção relacionados à proliferação, à confusão (Babel) ou amálgama de linguagens e materiais (suportes) presentes na cultura virtual. De outro lado, a desbabelização está ligada à reprodução do mesmo, do similar, às homologias ou similitudes, ao pastiche e à paródia disseminados na cultura virtual.

Se entendemos por utopia o ponto paradoxal de junção de um tempo e de um espaço, teremos  minimamente esboçado o lugar conceitual de onde procuraremos observar e compreender a cultura e o objeto virtuais. Ora, quando falamos do virtual, estamos falando do que está ao mesmo tempo totalmente imerso, diluído no tempo, numa agoridade angustiante (o aqui-agora), e também de algo que só existe enquanto origem no imaginário,[73] estando, portanto, fora do tempo (no lugar-nenhum). Aí, o caráter paradoxal que o virtual carrega em si. 

Antes de fixar limites conceituais, devemos pensar a (des)babelização como um conceito híbrido, um conceito do trânsito. Mas, para sermos didáticos, demarcaremos minimamente suas fronteiras, descrevendo os dois conceitos separadamente, numa redução necessária, para depois amalgamá-los nesta coisa mutante, mimetismo que participa da metamorfose do tempo.

 

DO VIRTUAL (DES)BABEL                              

Para começar a conversa, vamos a Jacques Derrida e a seu ensaio sobre tradução intitulado Torres de Babel.[74] Lendo este livrinho me veio a idéia de pensar o virtual a partir da metáfora da confusão da línguas, da babel, num movimento de diáspora representacional (babelização), pois a imagem virtual, por exemplo, é coisa movente e híbrida, que não comporta a síntese, a decantação (a não ser momentânea, fugaz); e concomitante a ele, outro movimento que seria aquele que determina ou separa o eternamente outro do mesmo travestido de novo (desbabelização).[75] 

Sintetizemos o que Derrida diz sobre a torre de Babel. Seremos sucintos. Derrida discute a sobre a traduzibilidade/intraduzibilidade de um texto a partir da metáfora da babel (confusão) de línguas, uma multiplicidade que interdiz não só a fixação de sentidos como a própria comunicabilidade humana.

O autor entende que o mito da torre de Babel é o mito da origem do mito, a metáfora da metáfora, a narrativa da narrativa. Cito: "A 'torre de Babel' não configura apenas a multiplicidade irredutível das línguas, ela exibe um não-acabamento, a impossibilidade de completar, de totalizar, de saturar, de acabar qualquer coisa que seria da ordem da edificação, da construção arquitetural, do sistema e da arquitetônica." (pp. 11-12)

Para desenvolver essa idéia, Derrida inteira o leitor da própria ambigüidade da palavra Babel, que enquanto nome próprio deveria ser intraduzível, mas por uma espécie de confusão associativa, pode ser traduzido por um nome comum: "confusão". 

Isso dito, Derrida cita Voltaire: para o filósofo, Ba significa pai - nas línguas orientais - e Bel significa Deus. Assim, chega-se à conclusão que Babel significa a cidade de Deus, a cidade santa, nome que os antigos davam a todas as suas capitais. Em seguida, Voltaire diz que é incontestável que Babel quer dizer confusão, seja porque os arquitetos se confundiram na altura da torre, seja porque as línguas se confundiram. Aqui, a ironia presente no texto do filósofo.

Sobre essa multiplicidade de/das línguas, Derrida afirma que Deus, é aquele que dá seu próprio nome (a cidade carrega o nome de Deus, o pai, sendo o pai da cidade que se chama confusão), dando todos os nomes. Deus é, portanto, aquele que está na origem da linguagem, é portanto aquele que é o nome dessa origem das línguas.

"Mas é também esse Deus, que no movimento de sua cólera (como o Deus de Boheme ou de Hegel, aquele que sai dele, determina-se na sua finitude e assim produz a história), anula o dom das línguas, ou ao menos o desune, semeia a confusão entre seus filhos e envenena o presente (Gift-gift). É também a origem das línguas, da multiplicidade dos idiomas, dito de outra maneira, daquilo que se chama correntemente de línguas maternais." (p. 14) 

Aqui, um resumo do mito, usado como metáfora da desconstrução e da proliferação, da multiplicidade, dos sentidos. 

 

ESTÉTICA OU UTOPIA(?) DOS TEXTOS IMPUROS

 

Comment redonner du sens à l'art alors qu'il est de plus en plus remis en cause par la fantastique inflation de l'univers des images et de sons que provoque l'explosion des tecnologies de la communication? Commer opérer, au sein du domaine réservé et protégé de l'art, la réunification symbolique de cette cacosémie qui plonge la société dans un océan furieux de signes? La solution apparaît du côté de l'ouverture qui propose une logique figurative fondée sur la polysémie. Polysémie associée à une participation perceptive du spectateur - interdite dans la communication sans feedback des médias de masse - qui peut se limiter à une relecture attentive de l'ouvre et à une priorité du processus sur le produit.[76]

 

Paradoxo primeiro: pensar utopicamente em uma estética do virtual é antes de tudo pensar uma estética dos textos impuros, pois já não é mais possível buscar o belo ou o sublime (enquanto conceitos imutáveis ou apriorísticos) num "texto" que é uma mescla de linguagens outras, heterogeneidades diversas, sobreposição do singular e do mesmo, evanescência de significados. É, sobretudo, pensar num "texto" que é imagem em constante mudança. Um "texto" que é, antes de tudo, processo e não produto.

Paradoxo segundo: Isso é o que se pode dizer da arte virtual, enquanto matéria movente. E se procurarmos categorias estéticas que se lhe apliquem, necessariamente elas deverão incorporar esse caráter não fixo de um "objeto" de arte  feito para ser fruído em meio digital. A fruição de um texto digital é, então, o sempre estar nestes instantes que se (des)dobram e (re)dobram formando um espaço que tende a se tornar, pela impossibilidade de demarcarmos nitidamente suas fronteiras, ao mesmo tempo "ausente" e "infinito".   

O que buscaremos, neste momento, é apenas o sucinto mapeamento de algumas características do possa ser esse chamado "objeto artístico digital". Ou  melhor dizendo, procuraremos descrever um "sintoma", cuja profilaxia posterior só poderá ser alcançada quando pormenores outros, hipóteses outras confirmarem, corroborarem ou desmentirem nosso diagnóstico primeiro.

Temos, a partir desse objeto híbrido toda uma constelação discursivo-conceitual já assentada, que procura dar conta de suas especificidades, na grande maioria dos casos tomando como ponto de partida categorias conceituais usadas para descrever as outras artes da imagem, a fotografia, a pintura, o cinema etc.[77] Embora muitos teóricos tomem por base essa cultura da imagem anterior à era do digital, é preciso dizer que a imagem digital não se deixa reduzir por essas descrições. A imagem digital é de uma "matéria" absolutamente outra, e a tentativa de descrevê-la (aplicando categorias conceituais dessas outras artes) pode nos levar a uma perigosa imprecisão terminológica.

A imagem digital é ambígua e paradoxal, ela é o todo e o fragmento indissociavelmente atados, estando, também ela, atada ao tempo. Por isso, analisá-la aplicando uma terminologia (das estéticas tradicionais?) que tende a fixar os contornos do objeto artístico pode ser temerário. Isso é dito porque comumente se "lê" uma obra no intuito de se fixar significações, mas a obra digital deve ser pensada como um processo infindável de significações em movimento. A própria significância ou fruição é o que deve estar em primeiro plano quando se pensa na cultura virtual. 

Quero dizer com isso que para a obra digital os critérios interpretativos e as cadeias discursivo-conceituais devem se ater à idéia de uma "imagem-processo" e não no desejo de estabelecer um roteiro de leitura ou interpretação que determina um "início" e um "fim" da obra, gerando seu encarceramento (enquanto objeto, ou lugar artístico) entre essas duas paredes e outras mais, fixando ou engessando a obra, poder daí "descrevê-la" com algum grau de segurança e acerto.

Além desse caráter movente da imagem digital, é preciso atentar que os critérios de valor das estéticas tradicionais não cabem mais para uma cultura do virtual. Aqui, é preciso ressaltar que o virtual se estabelece em uma cultura de massa e também num momento em que a técnica deixa de ser relegada a um segundo plano, para ganhar o primeiro plano da cena.

 

DE ALGUMAS UTOPIAS DO VIRTUAL

Aqui, penso estabelecer-se o primeiro grande racha nos teóricos que se ocuparam do virtual. As posições não são tão maniqueístas como podem parecem a um leitor de primeira sentada, e os equívocos, creio, se teceram justamente por isso.

Passo rapidamente esta questão. Sendo esquemático, teria:

A crença. De um lado, haveria uma nítida crença de elevação do virtual à categoria de máximo expoente de uma realização tecnológica e artística, no sentido de ampliar os horizontes do saber, de uma partilha humanitária do conhecimento etc. Desta corrente, Pierre Lévy seria um dos representantes que ganhou maior visibilidade, um dos porta-vozes dessa euforia retórica cuja prática nem sempre vemos concretizada.

A descrença. De outro lado, há toda uma constelação de autores que vinculam a questão do virtual a outras questões vinculadas à crítica da cultura pós-moderna. Como é humanamente impossível esquematizar (sem que isso seja um assassínio) a teoria desses autores, cujas obras, além de serem complexas, muitas vezes contêm posições divergentes, apenas Baudrillard (do qual falo um pouco mais adiante) será o eleito para exemplificar esta corrente. Falo, dentre outros, de Gilles Deleuze, Félix Gattari, François Lyotard, Fredric Jameson. Esses autores propõem questões que estão longe da aposta ingênua de que o virtual seria uma espécie de deus ex-machina que vem pôr fim a todas as aflições humanas.

Estamos, no entanto, de qualquer lugar que se fala, numa terra de ninguém (numa no man's land, na utopia),  pois de qualquer maneira precisamos re-inventar um modo de descrever esse mundo novo, essa época de metamorfoses do real cada vez mais velozes.

Pensando o virtual dentro da cultura pós-moderna, uma primeira questão importante seria a dificuldade que temos em não confundir o que poderia ser o verdadeiramente "novo" com a "novidade". Numa época de sucessão vertiginosa de potências criativas - dadas pela técnica - num momento em que a paródia, o pastiche, a colagem, o mosaico são cada vez não mais a derivação de uma mente vulgar e incapaz da criação, mas uma derivação lógica e consciente de que nada mais persiste ao tempo.  Essa questão, levada a seus limites, nos leva a mais um paradoxo:

Há ainda razão em falar em "novo" e "novidade" num tempo em que nada, nenhuma coisa, nenhum tempo é mais remoto do que o ontem?[78]

Tudo isso dito, para afirmar que o próprio "dispositivo" da imagem digital traz em si sua entropia ou fissão, que numa fração mínima de tempo, a fará explodir em tantas outras possibilidades artísticas. A arte digital é feita para ser efêmera, fugaz instante, e a proliferação infinita que a rege, essas camadas e camadas de "textos" em mise en abîme, em palimpsesto, nada mais são do que instantes de fruição que se fazem na disseminação do mesmo, envolto em tantas máscaras.

A tautologia (a desbabelização), portanto, seria o círculo de centro maior onde toda a arte digital gravita ou se ramifica em círculos concêntricos (a babelização). O fluxo, em todas direções, entre estes círculos é o que constitui a fruição. O círculo maior, da tautologia, prescreve um tempo mais dilatado, ou momentaneamente congelado, se assim se pode dizer, dentro do qual proliferam objetos quase indistintos, rastros ou sopros de coisas efêmeras assim como as línguas mortas: Babel é o temp(l)o da língua das delícias.

Estamos, neste momento, diante de uma proliferação de objetos que criam discursos em torno deles, mas que não escapam da agonística[79] geral presente na própria linguagem. Queremos dizer com isso que há uma luta constante contra a morte na cultura virtual, por isso, metaforicamente, a proliferação infindável acaba sendo um meio de preservação da própria vida.

    

DE ALGUMAS VIRTUALIDADES

 

Alors que l'art traditionnel reposait sur un système de représentation dûment institutionalisé, celui de Beau-Arts, et étroitemente solidaire d'un système technique parfaitement spécifique (peinture, dessin, gravure, etc., et ses multiples sous-catégories), l'art, dès le début du siècle, en substituant le réel à son image (collages et ready-mades) et en s'ouvrant à toutes les techniques, à tous les matériaux possibles, sans aucune interdiction de principe, refuse de s'enfermer dans une quelconque spécificité.[80]

 

Diante desse quadro, uma das perguntas que podem ser feitas é a seguinte: como pensar, esteticamente, o objeto artístico virtual com os julgamentos de valor presentes em toda estética? 

Quero dizer com isso que para julgarmos é preciso separar o joio do trigo, mas quando se pensa na multiplicação infinita possibilitada pelo virtual, esse processo de escolher grãos pode se tornar inviável. Há, no virtual, um enorme predomínio da técnica, ou a técnica[81] ganhando uma visibilidade nunca antes alcançada. Esta característica possibilita a proliferação infindável de objetos virtuais considerados artísticos ou não. Esse quadro descrito, por sua vez, impossibilita uma descrição satisfatória desse universo (de objetos virtuais), que tende ao infinito.

 

Como determinar a singularidade de tais objetos? Como pensar uma estética do efêmero, completamente oposta/diferenciada a/de qualquer estética até hoje delineada?

Para quem lê um pouco mais calmamente Baudrillard, por exemplo, antes de ver nele um crítico mordaz desse império do virtual saberá que no fim das contas ele quer pensar justamente como o efêmero virou moeda corrente, e como na sociedade pós-moderna a fugacidade virou não só moeda de troca mas também a própria essência da cultura. Não podemos falar mais em valores eternos (como beleza, sublime etc.), podemos apenas procurar constatar como hoje o mesmo pode se traduzir (em raros casos) enquanto outro, enquanto ouro.  Isso quer dizer que a reprodução do mesmo é moeda corrente, a dificuldade que se encontra é se conseguir criar um produto estético em que esse mesmo reluza.

Aí, penso, está o porquê de Baudrillard ver em Andy Warhol o último dos criadores verdadeiramente singulares, porque fez justamente da ausência da singularidade, da arte enquanto valor de consumo, a sua reflexão estética. E, mais que isso, Warhol colocou em xeque, guilhotinou de vez, por assim dizer, a idéia de que ainda fosse possível, na cultura pós-moderna, pensar em elementos estéticos e artísticos perenes. Se antes, ao que parece, foi Duchamp um dos pioneiros da discussão sobre a aleatoriedade e a institucionalização (os críticos de arte e os museus, por exemplo) do que se convencionou chamar artístico, Warhol talvez tenha sido o artista a dar o golpe de misericórdia  no perene, ou o pontapé inicial no efêmero quando se pensa em arte.

 

DO OBJETO VIRTUAL

É preciso que isso fique claro porque é justamente o tempo um dos conceitos fundantes, centrais a toda discussão sobre a cultura pós-moderna. E temos que pensar que estamos agora diante de um objeto artístico absolutamente novo, original, que tem que ser tratado e pensado em termos de contornos, de dispersões conceituais, de multiplicidade de objetos, de acontecimentos e de descontinuidades.

Como pensar o objeto virtual a partir de uma análise que tem (para ser verossímil) necessariamente que ser provisória? Uma análise, descrição, que não busque legitimar nada, nenhum conceito ou idéia que se fixe?

Só podemos pensar o objeto e a cultura virtual, é preciso que se repita, a partir da idéia de processo, de amálgama de contraditórios, de trânsito de conceitos, de redes conceituais que servem apenas para costurar um tecido fino e provisório, cuja aceleração temporal cuidará de sabiamente esgarçar. Quero dizer com isso, que só é possível tatear uma utopia do virtual, dificilmente se poderá pensar, tecer, descrever uma estética do virtual, como se fez com as outras artes.

É justamente aí, na efemeridade do gesto (cujo ancestral mais remoto seria Pollock) que o objeto virtual encontra sua efêmera singularidade. É quase como um susto. Como o sopro da criação. Quase como uma língua das delícias, anterior à própria fala. Mas, em verdade, o objeto virtual, pode-se pensar, verdadeiramente nunca chega a singularizar-se, porque sempre estará no quase. Sempre a um passo de.

 

DO ESPAÇO VIRTUAL

Quando falamos de babelização e desbabelização é preciso que saibamos que estes são dois processos artísticos/discursivos grudados à pele do virtual, mas que este, réptil que é, sempre nos levará a descrever contornos sucessivamente outros para que possamos dar conta dessa metamorfose do tempo.

Estaremos falando sempre de imagens, porque o virtual é o reino das imagens, imagens em movimento, mas ao contrário do cinema, por exemplo, as imagens virtuais podem ser muito mais aleatórias, e cuja decupagem e montagem é em tempo "real", portanto, nunca saberemos o final da "fita", porque nunca poderemos vê-la mais de uma vez.

Aqui, na imagem, penso que esse processo de desbabelização toma contorno no sentido de que as páginas da internet têm, na imensa maioria dos casos, uma espécie de roteiro preestabelecido, quase como que um "esqueleto" que é seguido... Digamos que quando navegamos na rede, seja pela "recursividade" dos programas etc. - seja pela mesma "maquiagem" das páginas - a sensação mais presente é a do já-visto. O mesmo pode ser dito da grande maioria dos sites dedicados à poesia ou à arte em geral. Digamos: são pouco "criativos", porque geralmente seguem uma máscara pronta. Raras são as exceções. O mesmo é sintoma da desbabelização.

Aí um outro sintoma, derivado do anterior: a proliferação de objetos virtuais proporcionada pela técnica dificulta muito a seleção, segundo alguns critérios estéticos vigentes, do que seria artístico ou não, do que "perduraria" no tempo. Aliás, além de ser humanamente impossível fazer um exaustivo mapeamento de tudo, para daí aplicar conceitos de valor, temos que nos perguntar se esse objeto, o virtual, é feito para "durar"?

Aí, mais um impasse: como fazer um catálogo, um museu de objetos virtuais, uma seleção do que pode ou não ser artisticamente interessante ou singular, se a própria multiplicação pode mascarar o mesmo em diferenciado (cópia, pastiche, paródia etc. - tudo isso nos remete de novo à pop art), e além disso pode haver objetos virtuais absolutamente "geniais" que podem ter ficado na rede algum tempo e depois sumido sem ao menos termos notado! Aqui teríamos algo como observar uma estrela de primeira grandeza que observamos mas que já morreu há muito! Infelizmente, no campo do virtual, isso ainda não é possível. As constelações visíveis, as estrelas visíveis, embora virtuais, ainda dependem da paradoxal materialidade do virtual.

Essa constatação é importante porque sabemos que os sites ficam no ar quando são visitados e não podemos afirmar que os sites mais visitados são os melhores etc. E mesmo os sites que conseguem se manter no ar, sendo pouco visitados, os que trabalham com a idéia de criação de textos e imagens ou coisas afins, não possibilitam a fixação dos trabalhos criados pelos internautas. Isso ocorre pela impotência do espaço.

Aqui, um cuidado que devemos ter: há teóricos mais deslumbrados que carregam demais, exageram demais na tinta nos elogios ao virtual, fazendo parecer que nele estaria a solução ou o grande avanço do homem em direção a um evolução artística e intelectual surpreendente. Mas sabemos, por exemplo, que o espaço é um dado impossibilitador da criação de um banco de dados em muitas páginas de geradores automáticos de textos etc. Aqui, um dado contra a falsa idéia da rede como uma biblioteca, seja qual for, infinita.

 

DIGRESSÃO NECESSÁRIA

As línguas mortas assim o são porque sustentam um tempo incapaz de escapar de seu próprio círculo vicioso: os passados do presente atualizados na fruição. Como estabelecer em que tempo estamos quando fruímos a arte digital? Mesmo que estejamos no espaço do museu, da galeria ou da rua, o tempo (se estivermos conectados na rede) é esse estar entre passados de um presente contingencial, sempre fugindo de nós mesmos.

Assim, nunca estaríamos verdadeiramente diante de um objeto virtual, mas sempre diante de sua sombra,[82] ou da sua potencialidade de imagem já desfeita. Perseguir a sombra desse objeto é perseguir a nossa própria metamorfose dos tempos, em nossa cultura pós-moderna.

Aqui um traço da babelização: não existe um único objeto de arte digital, mesmo que pensemos no mesmo objeto, porque enquanto coisa viva ele morre infinitamente para perpetuar o efêmero. Aqui, penso, nesse perpetuação do efêmero é que reside uma singularidade disso que podemos nomear objeto virtual. 

Quando se fala da cultura virtual, não se pode falar propriamente em reprodutibilidade[83] proprocionada pela técnica, como alguns teóricos fazem, porque o próprio mecanismo da produção digital é um mecanismo de indistinção entre cópia e original.

 

CONCECTANDO-SE AO EFÊMERO

           

(...) tirar o eterno do transitório. EPÍGRAFE REPETIDA

 

A modernidade é o transitório, o fugitivo, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra o eterno e o imutável.[84]

 

Charles Baudelaire

 

É preciso reenviar as mensagens para nós mesmos. Nós, seres do tempo, temos a tendência a crer que tudo que dizemos nunca foi dito. Muitas vezes lemos, com olhos turvos de tantas películas de peles de conceitos, o que queremos ler, como se estivéssemos além de tudo o que vem do passado. Essa tendência nos leva a revestir com peles e peles de palavras novas conceitos já vistos.

Isso tudo pra dizer o óbvio, ou para pisar em óbvios, que muitas vezes têm cascas finas demais e se quebram. O que Baudelaire escreve, exato e sucinto, nestas duas epígrafes, por exemplo, muitos outros fizeram e  fazem tratados para dizer o mesmo. Aí, a babelização a que me refiro, a proliferação conceitual presente em muito do que se vê na cultura virtual, que em grande maioria dos casos se restringe à pele, sendo "cultura visual".

Falamos em "películas" porque queremos resgatar, além desse caráter de finas peles coladas umas às outras, palimpsesto imaginado, também o caráter de imagem indissociável da arte digital. Constatação: toda arte digital é imagem, essa realidade é indiscutível. Mas, enquanto imagem híbrida, temos que tomar o máximo cuidado ao relacioná-la com a fotografia, a pintura ou com o cinema. Antes de ser uma imagem, a imagem digital é híbrida, e antes disso, de novo o tempo: efêmera.

Por isso, procurar sentidos, quando se fala em arte digital, é algo temerário e complicado. A sucessão imagética, sem nenhum corte-montagem, que vemos diante de uma página da internet, por exemplo, nos leva a estabelecer o seguinte: mais que a recordação, a cultura virtual trava uma luta entre o que reter e o que esquecer, isso num ritmo e velocidade muitas vezes alucinantes. Antes de pensar na experiência, temos que agarrar a pobreza. Mais do que a síntese, o movimento ou lei que devemos seguir é o de sermos rápidos, para não sermos afogados no mar do esquecimento por querermos recordar tudo.

Se a passagem vertiginosa das imagens virtuais em nossas retinas nos causa esse problema, o do envelhecimento precoce do nascente, o único modo de não sermos atulhados pelas ruínas dessas imagens que se sobrepõem é fazer uma seleção velocíssima do que realmente vale a pena reter. E essa seleção, claro, nem sempre será a melhor. A multiplicação imagética marca o desvio do pólo da recordação para o próprio processo de gerúndio da recepção, portanto para a própria via de mão dupla do processo de desbabelização/babelização configurado no fugaz do instante.

O que se quer dizer com isso é que o artista que trabalha com a arte digital deve, antes de mais nada, lidar com o efêmero. E para tanto, deve pensar o efêmero não como uma categoria exterior ao objeto artístico, mas incorporá-lo como matéria constitutiva da própria realização artística.

Isso quer dizer o seguinte: se a arte em geral é feita para ser ruminada, a arte digital é feita para ser regurgitada. Quero dizer com isso, que não se trata mais de uma arte que se propõe a sínteses, a roteiros de conhecimento, à elevação do espírito, sem nenhum julgamento de valor nisso (estou sendo apenas descritivo). A arte digital é feita para se prestar a esse eterno entrechoque de excessos expelidos. A arte digital é muito mais ruína que edifício.

 

FINITA VIA

Para finalizar, gostaria de expor algo que me intriga: mesmo que se tenha em mente todas essas características do objeto digital (falta de contorno definido, movência, sobreposição de planos significativos etc.), é estranho que aqueles que criam, em meio digital, quase não invistam, não  usem o caráter de contingência desse objeto como matéria de criação e fruição.

As páginas dedicadas a textos literários, por exemplo, na grande maioria dos casos não permitem ao fruidor a conversa infinita[85] que poderia ser tão enriquecedora no sentido de estabelecer a possibilidade de multiplicar esse diálogo do fruidor com a coisa fruída, mesmo que não haja a possibilidade de fixar esse texto num banco de dados, esse texto criado a partir da "interferência" de quem lê seria quase como uma espécie de reverência em negativo, de culto pagão ao transitório. Aí, penso, estaria verdadeiramente estabelecido um momento metalinguístico, ou meta-artístico propriamente dizendo, da arte digital.

 

Aí, penso, estaria verdadeiramente colocada às claras a ausência da aura do objeto artístico, de que tanto se fala depois de Benjamim; porque mesmo na arte digital, ao que parece, existe ainda a crença na aura que já se perdeu, mesmo que seja essa uma aura efêmera. Se realmente se fizesse este arruinamento textual, esse apagamento da autoria, deixando com que a partir do nada, ou de algo amorfo, se constituíssem imagens e textos, que poderiam ser infinitamente alterados, penso que teríamos algo que performaria de forma satisfatória e instigante a característica de efemeridade do objeto virtual.[86]

Aí, teríamos, enfim, construída a Torre.

  

            ouroboros

(começo em fim da arte digital)

cobra comendo o próprio rabo

 
 
 
 
dai toyuu jiwo kyaku amari
suna ni kaki
shinu kotowo yamete kaeri kitareri [87]
 
 
 
 
SOLO
 
A ficção? Já estou nela. Meus personagens são algumas hipóteses loucas que submetem a realidade a determinadas sevícias e que no final termino por assassinar quando eles já executaram a sua obra. Única forma de tratar as idéias: o assassinato (liquidamos bem os conceitos) - mas o crime deve ser perfeito. Evidentemente, tudo isso é imaginário, qualquer semelhança com seres reais seria puramente fortuita.[88]
 

 

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[1] LYOTARD, J.-F.. Peregrinações. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. p. 67.

[2] MÜLLER, Marcos J. Reflexão estética e intencionalidade operante. In: Manuscrito XXIV (2). CIDADE: EDITORA. Out. 2001.

[3] KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Trad. Valério Rohden e Antônio Marques. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1993.

[4] LYOTARD, Jean-François. Peregrinações. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. p. 59.

[5] CORBISIER, Roland. Enciclopédia filosófica. Petrópolis: Vozes, 1974.  p. 44.

[6] Esses ensaios estão no livro Texto/Contexto II. Campinas: Ed. da Unicamp; São Paulo: Edusp/Perspectiva, 1993. Páginas 267-273 e 275-282.

[7] "Não se trata apenas de atritos e antipatias pessoais, nem só do choque das gerações. A raiz é o profundo antagonismo entre atitudes e concepções fundamentais relativas à vida, moral, arte e sociedade. Enquanto os românticos exaltam, desde logo, a fantasia desenfreada, o excêntrico e monstruoso, o grotesco e 'original', Schiller e Goethe exigem na poesia uma 'linguagem nobre e serena' (o decoro clássico), a 'idealização do objeto', a 'medida harmoniosa', a tipização (não o característico dos românticos), a 'serenidade circunspecta', a precisão, a 'economia sábia' e 'calma cautelosa'." - ROSENFELD, Anatol. Op. cit., p. 271.

[8] RONSENFELD, Anatol. Op. cit., p. 280, grifos meus.

[9] ÁVILA, Myriam. Rima e solução: a poesia nonsense de Lewis Carroll e Edward Lear. São Paulo: Annablumme, 1995.

[10] BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1979. p. 118.

[11] Idem ibidem, p. 117.

[12] JOLLES, André. Formas simples. São Paulo: Cultrix, s/d.

  Algumas formas simples: chiste, conto, mito, fábula, saga, advinha, legenda.

[13] Embora extensa, cito a noção de cronotopo do crítico russo.

 BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética. São Paulo, Ed. Unesp/Hucitec, 1993. Nas páginas 211-212, lemos:

"À interligação fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em literatura, chamaremos cronotopo (que significa espaço-tempo). (...) No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais num todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história. Os índices do tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo. Esse cruzamento de séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico. / O cronotopo tem um significado fundamental para os gêneros na literatura. Pode-se dizer francamente que o gênero e as variedades do gênero são determinadas justamente pelo cronotopo, sendo que em literatura o princípio condutor do cronotopo é o tempo. O cronotopo como categoria conteudístico-formal determina (em medida significativa) também a imagem do indivíduo na literatura; essa imagem sempre é fundamentalmente cronotópica." (grifos do texto)

[14] LECERCLE, Jean-Jacques. Philosophy of nonsense. Londres e Nova York: Routledge, 1994. p. 168. Grifo do texto.

[15] Uso o conceito conforme especificado no texto "Paródia & Cia.", de KOTHE, Flávio R. Tempo Brasileiro (62)/Sobre a paródia. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro, jul.-set. 1980. pp. 97-125.

   Cito: "Paródia, segundo o étimo, significa 'canto paralelo': é um texto que contém outro texto em si, do qual ela é uma negação, uma rejeição e uma alternativa. Ela geralmente diz o que o outro texto deixou de dizer e ela insiste no fato de não ter sido dito. A paródia é um texto duplo, pois contém o texto parodiado e, ao mesmo tempo, a negação dele. Ela é, portanto, a síntese de uma contradição, dando prioridade para a antítese, em detrimento da tese proposta pelo texto parodiado." (p. 98)

[16] FELLINI, Federico. Apud ARÊAS, Vilma. Iniciação à comédia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. p. 8.

[17] ECO, Umberto. O cômico e a regra. In: Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 350, grifos meus.

[18] ROSSET, Clément. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. pp. 193-194.

[19] BECKETT, Samuel. Malone morre. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 13.

[20] Penso, agora, mais especificamente, na trilogia publicada pelo escritor entre 1951 e 1953, composta pelos livros Molloy, Malone morre e O inominável.

[21] BECKETT, Samuel. Molloy. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. A frase está na capa do livro.

[22] ISHIKAWA, Takuboku. Tankas. São Paulo: Massao Ohno/Aliança Cultural Brasil-Japão, 1991. p. 18.

[23] JULIET, Charles. Encontro com Samuel Beckett. In: Novos Estudos Cebrap (nº 24). São Paulo, 24/7/89. p. 64. (Entrevista)

[24] BECKETT, Samuel. Uma carta sobre 'Godot'. In: "Caderno Mais!", Folha de S. Paulo, São Paulo, 8/9/96. p. 7.

[25] BORGES, Jorge Luis. Sete noites. São Paulo: Max Limonad, 1985. p. 110.

[26] BECKETT, Samuel. À espera de Godot. In: Teatro de Samuel Beckett. Lisboa: Arcádia, s/d. p. 82 (fim do primeiro ato); p. 149 (fim da peça).

[27] Sobre essa questão, remeto o leitor ao livro: STEINER, George. Extraterritorial (a literatura e a revolução da linguagem). São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

   "A escassez de Beckett, sua tendência para dizer menos, é a antítese. Becektt usa palavras como se cada uma tivesse de ser extraída de um cofre e contrabandeada para a luz a partir de um estoque perigosamente baixo. Se a mesma palavra serve, use-a muitas vezes, até que fique gasta e anônima." (p. 24)

[28] Idem, p. 25.

[29] BECKETT, Samuel. Op. cit., pp. 91-92.

[30] STEINER, George. Op. cit.; p. 25.

[31] BECKETT, Samuel. Op. cit., p. 65.

[32] STEINER, George. Op. cit., p. 26.

[33] Tomo a expressão "cair na história" emprestada de Jankélévitch.

"En fait l'homme n'est pas un être essentiellement pur et intemporel Qui serait accidentellement tombé dans l'histoire; l'homme n'est pas une substance fondamentalment invariable Qui évoluerait et changerait secondairement: car 'il y a des changements, mais il n'y a pas, sous le changement, des choses qui changent...'" (grifos meus, o texto em em aspas simples é de Henry Bergson). In JANKÉLÉVITCH, Vladimir. Le pur et l'impur. Paris: Flammarion, 1960. pp. 246-247. 

[34] Ver BROHM, Jean-Marie & LARRÈRE, Catherine & LASCOUMES, Pierre (orgs.). Les corps (sociétés, sciences, politiques, imaginaires). Paris: Belin, 1992.

   A citação completa é a seguinte: "L'homme est un irréversible en chair et en os! L'homme est un irréversible incarné: tou son 'être' consiste à devenir (c'est-à-dire à être en n'etant pas), et par surcrôit il devient (advient, survient, quelque fois même se souvient), mais ne revient jamais." (p. 12)

[35] Texto sobre os monumentos dedicados às pessoas mortas durante a ditadura chilena.  Ver RICHARD, Nelly. Sitios de la memoria, vaciamento del recuerdo. In: Revista de critica cultural (23). Chile, 2001.

[36] BAUDRILLARD, Jean. A ilusão vital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 68. Mais adiante, Baudrillard descreverá a "morte do real", do seguinte modo: "Indiferente a toda verdade, a realidade torna-se uma espécie de esfinge, enigmática em sua hiperconformidade, simulando a si própria como virtualidade ou espetáculo de realidade. A realidade torna-se hiper-realidade - paroxismo e paródia ao mesmo tempo." (p. 83)

[37] BAUDRILLARD, Jean. América. Rio de Janeiro: Rocco. 1986. p. 31.

[38] BAUDRILLARD, Jean. "Le plus bel objet de consommation". In BROHM, Jean-Marie & LARRÈRE, Catherine & LASCOUMES, Pierre (orgs.). Les corps (sociétés, sciences, politiques, imaginaires). Paris: Belin, 1992. p. 17. Grifos meus.

  Original: "Dans l'ordre traditionel, chez le paysan par exemple, pas d'investissement narcissique, pas de perception spectaculaire de son corps, mais une vision instrumentale/magique, induite par les procès de travail et le rapport à la nature."

[39] Sobre a Idade Média como um momento de "errância" intensa, ver MAFFESOLI, Michel. Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-modernas. Rio de Janeiro: Record, 2001. pp. 48 e segs.

[40] Idem, p. 53.

[41] BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, Brasília: Ed. da UNB. 1987. p. 17.

[42] Idem, p. 43.

[43] Idem, ibidem, p. 320.

[44] STEINER, George. No castelo do Barba Azul. São Paulo: Companhia da Letras. 1991. p. 64.

 

[45] Hilda Hilst usa essas duas acepções do termo, discutindo-as, na peça de teatro Auto da barca de Camiri, escrita em 1968 e publicada em 2000.

[46] ROSENFELD, A. Hilda Hilst: poeta, narradora, dramaturga. In: HILST, Hilda. Fluxo-floema. São Paulo: Perspectiva, 1970. p. 16. Grifos meus.

[47] Esse excesso, esteticamente, na linguagem, configura o que chamo de traços barrocos na literatura hilstiana. Hilda, numa entrevista, diz o seguinte: "Tenho vontade do barroco: uma volúpia da língua". Ver GRAIEB, Carlos. Hilda Hilst expõe roteiro do amor sonhado. In: O Estado de S. Paulo, São Paulo, 14/8/95.

[48] Sobre cristianismo e revolução, o leitor pode se apoiar nos seguintes textos:

    BATAILLE, G. A parte maldita. Rio de Janeiro: Imago, 1975. pp. 42 e sgs.

    CASTRO-GOMÉZ, Santiago. Teorias sin disciplina. Disponível em:  (www.ensayo.rom.uga.edu/ crítica/teoría/castro/castroG.htm); p. 4.

    IFFLAND, James. Ideologias de la muerte en la poesia de Otto Rene Castillo. In: VÁRIOS AUTORES. Ideologies & literature. Minneapolis: The Prisma Institute, 1989.

   ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano (a essência das religiões). Lisboa: Edição Livros do Brasil. s/d.

   Eliade fala sobre marxismo e escatologia:

   "Marx retoma e prolonga um dos grandes mitos escatológicos do mundo asiático-mediterrâneo, a saber: o papel redentor do Justo (o 'eleito', o 'ungido', o 'inocente', o 'mensageiro'; nos nossos dias, o proletariado), cujos sofrimentos são chamados a mudar o estatuto ontológico do mundo. Com efeito, a sociedade de classes de Marx e a consequente desaparição das tensões históricas encontram o seu precedente mais exacto no mito da Idade do Ouro que, segundo múltiplas tradições, caracteriza o começo e o fim da História. Marx enriqueceu este mito venerável de toda uma ideologia messiânica judeo-cristã: por um lado, o papel profético e a função soteriológica que ele atribui ao proletariado; por outro, a luta final entre o Bem e o Mal, que pode aproximar-se facilmente do conflito apocalíptico entre o Cristo e o Anticristo, seguido da vitória decisiva do primeiro. É até significativo que Marx retome por sua conta a esperança escatológica judeo-cristã de um fim absoluto da História (...)" (p. 213; grifos do texto)

[49] PALLOTTINI, Renata. "Do teatro". In HILST, Hilda. Teatro reunido (volume I). São Paulo: Nankin Editorial. 2000. pp. 180-181.

[50] Para os dois significados da palavra utopia, ver: FUNCK, Susana Bornéo. The impact of gender: feminist literary utopias in the 1970s. Florianópolis: Pós-graduação em inglês / UFSC, 1998.

 

[51] HILST, Hilda. "Com meus olhos de cão" in Com meus olhos de cão e outras novelas. São Paulo: Brasiliense, 1986. pp. 7-54.

[52] HILST, Hilda. A obscena senhora D. Campinas: Ed. Pontes, 1993. pp. 54-56. Grifos meus.

[53] POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. Rio de Janeiro: Globo, 1985. p. 166.

[54] GAGNEBIN, Jeanne. Notas sobre as noções de origem e original em Walter Benjamin. In: Vários autores. Revista 34 Letras (nº5/6). Rio de Janeiro: Nova Fronteira/34 Literatura S/C. pp. 287-288. 

[55] Para esse problema da estetização e aceitação institucional (institucianalização) das vanguardas consultar ENZENSBERGER, Hans Magnus. "As aporias da vanguarda" in Revista Tempo brasileiro (26/27). Rio de Janeiro: Folha Carioca Editora, jan.-março 1971. pp. 85-112.

  Falando das vanguardas da época em que escreve o texto (1962), o autor diz o seguinte:

  "Todas as vanguardas de hoje não são senão repetição, embuste para com as outras e para consigo mesmas. O movimento (o surrealismo), que como grupo unido a uma doutrina, nascido há cinquenta ou trinta anos com o propósito de romper a resistência que uma sociedade compacta oferecia à arte moderna, não sobreviveu às condições históricas que o tornaram possível. Conspirar em nome das artes não é possível senão onde elas sofrem opressão. Uma vanguarda a que os poderes oficiais favorecem é uma vanguarda que perdeu o direito de sê-lo. (...) Ela faz comércio de um futuro que não lhe pertence. Seu movimento não é senão regressão. A vanguarda se transformou no seu oposto, ela se tornou anacronismo. O risco pouco visível mas infinito, em que vive o futuro das artes, ela recusa assumir." (p. 112; grifos meus)

[56] VIDAL, Gore. Letras francesas: teorias do novo romance.  In: De fato e de ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. pp. 169.

[57] MAFFESOLI, Michel. A conquista do presente. Natal: Argos Editora, 2001.

 "O concreto e a retórica, a imagem e o verbo são expressões do barroco cotidiano em que o menor fato anódino se torna suntuoso e teatral. Também aí encontramos a predominância da imagem, do aparecer, do insignificante. O ritual social culmina nessa retórica pictural que exprime, por atalho, o trajeto da gesta humana. O jogo teatral que se esgota em seu próprio ato. É nesse sentido, pelo seu afrontamento da finitude, que ele é trágico. Mas se trata de um trágico visual, um trágico de ópera, em que, numa conjunção de imagens e palavras, é todo um espaço público que se desenha, espaço de troca, espaço de circulação sem fim dos afetos e das paixões." (p. 214; grifos meus)

[58] Para uma descrição mais pormenorizada sobre a montagem no cinema, consultar EISENSTEIN, Sergei. Film form. New York: Harcourt, Brace & World, 1949.

[59] O autor como produtor. In: Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1895, pp. 187-201. A citação está na p. 198. A explanação, mais detalhada, que Benjamin faz sobre o assunto é a seguinte:  "A interrupção da ação - por causa da qual Brecht chamou o seu teatro de épico - atua constantemente contra a ilusão do público. Tal ilusão é complemente inútil para um teatro que pretenda trabalhar os elementos do real no sentido de um experimento. No fim e não no começo deste experimento é que estão, porém, as situações e circunstâncias. Situações que, nesta ou naquela configuração, sempre são as nossas. Elas não são levadas para mais perto do espectador, mas distanciadas dele. Ele as reconhece como as situações reais, não como auto-suficiência como no teatro do naturalismo, mas com espanto, com estranheza. (...) a interrupção não tem aqui um caráter de divertida atração, mas uma função organizatória. Detém o curso da ação, obrigando com isso o espectador a assumir uma postura quanto à ação e obrigando o ator a posicionar-se ante o seu papel." (pp. 198-199; grifos meus)

[60] Façamos a distinção entre enredo/trama e fábula/história. Enredo, trama, intriga é a organização artística da fábula/história, a maneira como algo é narrado ao leitor.

[61] BENJAMIN, Walter. Op. cit., p. 207.

[62] La peintre de la vie moderne. In: BAUDELAIRE, Charles. Ouvres complètes. Paris: Seuil, 1968. p. 553.

[63] Consultar  nas Ouvres complètes. Paris: Seuil, 1968, os seguintes textos de Baudelaire:

    "Du vin et du haschish - comparés comme moyens de multiplication de l'individualité" (pp. 303-312)

    Sob o título "Les paredis artificiels - opium et haschish":

    "Le poème du haschish" (pp. 567-584) e "Un mangeur d'opium" (pp. 584-616).

   O poema do haxixe. Rio de Janeiro: Newton Compton Brasil Ltda., 1996.

   Um comedor de ópio. Rio de Janeiro: Newton Compton Brasil Ltda., 1996.

[64] A discussão sobre a alteração da consciência, presente nos "Paraísos artificiais", nos poemas se dá metaforicamente. Tudo relacionado ao problema da percepção do tempo. Veja-se nos seguintes poemas do livro Les fleurs du mal: "- O douleur! Ô douleur! Le Temps mange la vie, / Et l'obscur Ennemi Qui nous ronge le coeur / Du sang que nous perdons croît et se fortifie!" ("L'Ennemi"); "Toutes m'enivrent! Mais parmi ces êtres frêles / Il en est Qui, faisant de la douleur un miel..." ("Les petites vieilles); "Moi, je buvais, crispé comme un extravagant, / Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan, / La douceur Qui fsacine et le plaisir qui tue." ("A une passante").

Nos Pequenos poemas em prosa: Tempo/láudano: "Não! Já não existem minutos! Já não existem segundos! O tempo desapareceu; é a Eternidade que reina, uma eternidade de delícias! (...) Sim! O Tempo reina; ele retomou sua brutal ditadura. E me empurra, como se eu fosse um boi, com seu duplo aguilhão." ( "O quarto duplo"); tempo/olho da mulher: "(...) no fundo de seus olhos adoráveis sempre vejo distintamente a hora, sempre a mesma, uma hora vasta, solene, grande como o espaço, sem divisões em minutos e segundos, - uma hora imóvel eu não está marcada nos relógios e, no entanto, leve como um suspiro, veloz como uma espiada." ("O relógio")

[65] VER "A une heure du matin" in Pequenos poemas em prosa (Trad. Dorothée de Bruchard, edição bilingüe). Florianópolis: Editora da UFSC, 1996. p. 54/57.

   "(...) être monté pour tuer le temps, pendant une averse, chez une sauteuse, Qui m'a prié de lui dessigner un costume de Vénustre (...)" (p. 54; grifos do original)

 

[66] BAUDELAIRE, Charles. Ouvres complètes. Paris: Seuil, 1982. p. 704. Grifos meus.

    Original: "L'IVROGNE - Ne pas oublier que l'ivresse et la négation du temps, comme tout état violent de l'esprit, et que conséquemment tous les résultats de la perte du temps doivent défiler devant les yeux de l'ivrogne, sans détruire en lui l'habitude de remettre au lendemain sa conversion, jusqu''a complète perversion de tout les sentiments et catastrophe finale."

[67] Conto publicado no volume intitulado Rútilo Nada/Obscena senhora D/Qadós. Campinas: Pontes, 1993. Apenas "Rútilo Nada" é inédito, os dois outros textos já tinham sido publicados.

[68] O filósofo Terêncio, que escreveu Homo sum; humani nihil a me alienum puto, "Sou um homem; nada do que é humano me foi estranho."

  A escritora retirou esta frase, que encerra o conto "Rútilo Nada", do prefácio que Anatol Rosenfeld fez para Fluxo-floema, o primeiro livro de prosa de Hilda Hilst, publicado em 1970.

[69] Gostaria de citar, aqui, uma possível fonte inspiradora do poema de Baudelaire. Trata-se de um trecho do texto "A filosofia da composição",  de Poe: "Eu já havia chegado à idéia de um Corvo, a ave do mau agouro, repetindo monotonamente a expressão 'Nunca mais', na conclusão de cada estância de um poema de tom melancólico e extensão de cerca de cem linhas. Então, jamais perdendo de vista o objetivo - o superlativo, ou a perfeição em todos os pontos - perguntei-me: 'De todos os temas melancólicos, qual, segundo o compreensão universal da humanidade, é o mais melancólico?' A Morte - foi a resposta evidente. 'E quando - insisti - esse mais melancólico dos temas se torna o mais poético?' (...) 'Quando ele se alia, mais de perto, à Beleza; a morte, pois. De uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tema mais poético do mundo e, igualmente, a boca mais capaz de desenvolver tal tema é a de um amante despojado de seu amor.' " In: POE, E. A. Poemas e ensaios. Rio de Janeiro: Globo, 1985. pp. 106-107.

[70] O "ut pictura poesis" (assim como é pintura, é poesia), de Horácio. "The notion that poetry and painting are alike had had some currency even before Horace, who probably knew - even if he may not have assumed that his audience would recall - the more explicit earlier statement of Simonides of Keos (first recorded by Plutarch, De gloria Atheniensium, 3.347a, more than a century after Ars Poetica): "Poema pictura loquens, pictura poema silens" (poetry is a speaking picture, painting a silent [mute] poetry)." Disponível em: https://www.english.upenn.edu/~afilreis/88/utpict.html - Acesso em: XX

[71] ELIAS, N. Sobre el tiempo. México: Fondo Cultura Económica, 1997. pp. 146-7.

[72] DELEUZE, G; GUATTARI, F. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. p. 130.

[73] A relação entre o real e o imaginário é descrita, por alguns autores, ligada à simulação e à dissimulação.

   Jean Baudrillard afirma que a liquidação de todos os referenciais marca a era da simulação, na qual acontece uma operação de dissuasão de todo o processo real pelo seu duplo operatório, ou seja, há uma substituição no real dos signos do real, que nunca mais terá a oportunidade de se produzir, ao abrigo do imaginário, senão como hiper-real. Sobre a (dis)simulação o autor diz: "Dissimular é fingir não ter o que se tem. Simular é fingir ter o que não se tem. O primeiro refere-se a uma presença, o segundo a uma ausência. Mas é mais complicado, pois simular não é fingir: 'Aquele que finge uma doença pode simplesmente meter-se na cama e fazer crer que está doente. Aquele que simula uma doença determina em si próprio alguns dos respectivos sintomas. (Littré) Logo fingir, ou dissimular, deixam intacto o princípio da realidade: a diferença continua a ser clara, está apenas disfarçada, enquanto que a simulação põe em causa a diferença do 'verdadeiro' e do 'falso', do 'real' e do 'imaginário'. O simulador está ou não doente se produz 'verdadeiros' sintomas?" (BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D'Água, 1981. p. 9-10)

   A questão que Baudrillard coloca já aparece, de certa forma, nos tratadistas barrocos. No prefácio do livro Da dissimulação honesta, de Torquato Accetto, Alcir Pécora diz: "Também Benedetto Croce compreende a 'identidade substancial' que Accetto prevê entre simulação e dissimulação, conceitos distintos apenas como 'positivo e negativo do mesmo', da mesma maneira que ocorre nas fórmulas de Grotius, que os define da seguinte forma: Simulatio (rei absentis): euis quod renera non adest, praetexta praesentia (aquilo que verdadeiramente não está junto, apresentado como presente); Dissimulatio (rei praesentis): euis quod revera adest, negata praesentia  (aquilo que verdadeiramente está junto, negada a presença)." In:  (ACCETTO, Torquato. Da dissimulação honesta (trad. Edmir Missio). São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. XVII-XVIII)    

[74] DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

[75] Essa eterna mutabilidade do mesmo pode demonstrar uma contradição da busca infreada da "novidade". Com a diferença de que hoje a velocidade em que as coisas são esquecidas é muito mais rápida, essa idéia pode ser aproximada de uma reflexão feita por Enzensberg: "O produto estético de amanhã, oferecido hoje, será olhado amanhã como um resto invendável que irá parar no arquivo ou no armazém: talvez dentro de dez anos lhe toque a sorte de ser lançado de novo como um remake sentimental. A obra de arte está também submetida aos procedimentos do envelhecimento artificial, já que ao mesmo tempo se cobra e se elimina sua glória  futura; ou melhor, se transforma, sob a forma de publicidade, em uma glória antecipada que se outorga à obra antes de sua aparição. Sua posteridade se produz industrialmente, de maneira que o princípio da não simultaneidade do simultâneo se converte em realidade educando a clientela para que seja uma clientela de vanguarda que quer adquirir a última novidade e exige, de certo modo, não consumir senão o futuro." (p. 95) Consultar: ENZENSBERGER, Hans Magnus. As aporias da vanguarda. In: Revista Tempo Brasileiro (no 26/27) - Vanguarda e modernidade. Edições Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, jan./março 1971. pp. 85-112.

[76] COUCHOT, Edmond. La technologie dans l'art. Nîmes: Éditions Jacqueline Chambom, 1998. pp. 115-116.

[77] Alguns autores: MACHADO, Arlindo. Máquina e imaginário: o desafio das poéticas tecnológicas. São Paulo: Edusp, 2001.; DELEUZE, Gilles. Cinema (a imagem-movimento). São Paulo: Brasiliense, 1985.; PARENTE, André (org.). Imagem-máquina (a era das tecnologias do virtual). São Paulo: Ed. 34, 1993.; BARROS, Ana & SANTAELLA, Lucia (Orgs.). Mídias e artes: os desafios da arte no início do século XXI. São Paulo: Unimarco Editora, 2002.

[78] Alusão a uma frase usada por alguns jornalistas: "Para o jornalismo, nada mais remoto que o ontem."

[79] Considerando-se o enunciado como um 'lance' feito num jogo, uma  possível derivação é que "(...) falar é combater, no sentido de jogar, e que os atos de linguagem provém de uma agonística geral. Isso não significa necessariamente que se joga para ganhar. Pode-se realizar um lance pelo prazer de inventá-lo: não é este o caso do trabalho de estímulo da língua provocado pela fala e pela literatura? A invenção contínua de construções novas, de palavras e de sentidos é o que faz evoluir a língua, proporciona grandes alegrias. Mas, sem dúvida, mesmo este prazer não é independente de um sentimento de sucesso, sobre um adversário pelo menos, mas de envergadura: a língua estabelecida, a conotação." In: LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002. p. 17. Grifo meu.

[80] COUCHOT, Edmond. La technologie dans l'art. Nîmes: Éditions Jacqueline Chambom, 1998. pp. 116.

[81] A relação entre arte e técnica/tecnologia é uma questão, para mim, um pouco confusa. Podemos tomar esta relação segundo Lyotard:

   "Técnica: seria necessário tempo para comentar o emprego filosófico da palavra. Lembrar-se de que techné designa em grego antigo ao mesmo tempo a arte e o que chamamos de tecnologia. Lembrar-se também de que tecnologia sempre significa nova tecnologia.". In: LYOTARD, J.F. Peregrinações. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. p. 51.

   Ou, segundo a concepção de Couchot:  "Il faut remarquer d'abord que l'ordinateur et la télévision sont redevables à une technique commune de leur perfectionnement et leur développement, celle du tube à vide. Elle est à l'origine de l'électronique, technologie qui marque un changement capital par rapport aux techniques mécaniques et électriques et à la maîtrise de énergies. L'électronique n'est plus une technique dans la mesure où elle n'est plus empirique mais solidaire de la science, de ses théories, de ses formalisations mathématiques.". In: COUCHOT, Edmond. La technologie dans l'art. Nîmes: Éditions Jacqueline Chambom, 1998. p. 76-77.  

[82] "A alusão a  Peter Schlemihl, L'Homme qui a perdu son Ombre, não é acidental. Pois a sombra, como a imagem no espelho (no Estudante de Praga), é por excelência um resto, algo que pode 'cair' do corpo, assim como os cabelos, os excrementos ou os detritos de unhas aos quais estão assimiladas em toda a magia arcaica. Mas são também, sabemo-lo, 'metáforas' da alma, da respiração, do Ser, da essência, do que dá um profundo sentido ao sujeito. Sem imagem ou sem sombra, o corpo torna-se um nada transparente, já não é ele próprio nada mais que resto. É a substância diáfana que fica, uma vez que a sombra se vai. Já não há realidade: foi a sombra que levou consigo toda a realidade (o mesmo se passa em O estudante de Praga, a imagem quebrada com o espelho implica a morte imediata do herói - seqüência clássica dos contos fantásticos - ver também A sombra de Hans Christian Ardensen). Assim, o corpo pode ser apenas o detrito do seu próprio resíduo, racaída da sua própria recaída. Só a ordem dita real permite privilegiar o corpo como referência. Mas nada na ordem simbólica permite fazer uma aposta sobre a prioridade de um ou de outro (do corpo ou da sombra). E é esta reversão da sombra sobre o corpo, esta recaída do essencial, no limite do essencial, sob o golpe do insignificante, essa derrota incessante do sentido perante o que dele resta, quer sejam os detritos de unhas ou o objeto 'alínea a)', que constitui o encanto, a beleza inquietante destas histórias." In: BAUDRILALRD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D'Água, 1991. p. 178; nota 1 ; grifos do meus.

[83] Alguns autores usam o conceito de "reprodutibilidade técnica", de Benjamin, em seus estudos sobre a cultura virtual. Conferir: PAIVA, Cláudio Cardoso de. Walter Benjamin e a imaginação cibernética: experiência e comunicabilidade na era do virtual. In: https://ubista.ubi.pt/~comum/cardoso-claudio-paiva-walter-benjamin.html         

[84] La peintre de la vie moderne. In: BAUDELAIRE, C. Ouvres complètes. Paris: Seuil, 1968. p. 553.

[85] Referência casual ao livro, de Maurice Blanchot, Conversa infinita.

[86] Uma experiência que lida com a efemeridade do virtual é o holopoema.  Cf. MACHADO, Arlindo. O sonho de Mallarmé. In: Máquina e imaginário: o desafio das poéticas tecnológicas. São Paulo: Edusp, 2001. pp. 165-191. "Uma primeira aproximação do sonho mallarmaico poderia estar no holopoema, o poema construído com luz paralela do laser num espaço virtual de três dimensões. Certamente, é preciso considerar que a maior parte dos poemas esculpidos em hologramas, como de resto acontece com todas as novas tecnologias, não consistem senão adaptações tridimensionais de poemas que já funcionam bem na página plana e aos quais a dimensão de profundidade não acrescenta qualquer coisa de essencial. É o que acontece, por exemplo, em certos trabalhos holográficos do alemão Dieter Jung, que apenas exibem um novo arranjo espacial para poemas em versos - de resto, convencionais - de Hans Magnus Enzensberger. Mas quando acontece de o holopoema explorar as possibilidades de uma escritura verdadeiramente tridimensional, o resultado pode ser desconcertante, pois ele coloca o leitor diante de um texto paradoxal, um texto onde as palavras não estão mais arranjadas por nexos absolutos de linearidade e cujas relações sintáticas encontram-se em permamente transformação. Examinemos um poema como Luz / Mente / Muda / Cor de Augusto de Campos, na versão holográfica de Júlio Plaza: distribuídos no espaço tridimensional, em diferentes posições das coordenadas x, y e z, os grafemas 'muda', 'luz', 'cor' e 'mente' podem ser combinados de várias maneiras, possibilitando múltiplas leituras. Não existindo espaço plano, não há seqüência 'lógica de leitura', nem qualquer espécie de hierarquia regendo s combinações, tanto mais que o simples deslocamento do leitor diante do objeto virtual já faz com que o arranjo tridimensional se altere em relação a ele. Dependendo de como cada leitor se posiciona em relação aos vocábulos em cada momento, as funções gramaticais se alteram: 'muda' pode ser verbo ou adjetivo; 'mente' pode ser verbo, substantivo e até mesmo sufixo adverbial. A ambigüidade do arranjo estrutural, associada ainda à ambigüidade dos efeitos cromáticos da holografia (as cores se alternam ao menor movimento do leitor), permitem obter diversas soluções de montagem, num processo que lembra estreitamente - como observou Plaza (...) - a própria perfomance do pensamento ao operar por associações. Distribuído no espaço tridimensional, o poema de Augusto de Campos funciona melhor do que na página impressa, pois adquire uma forma dinâmica que não está muito evidente no papel." (p. 167-169; grifos meus)

[87] In: ISHIKAWA, Takuboku. Tankas. São Paulo: Massao Ohno/Aliança Cultural Brasil-Japão, 1991. p. 173.

   "Dai' significa: título, assunto, tema.

    Tradução:

    "Daí" mais de cem vezes escrita na areia

    voltei cansado

    desisti de morrer.

[88] BAUDRILLARD, Jean. Cool memories II. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. p. 39.