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POESIA IMPURA III
Do livro "Lírica impura III" (inédito), de 2005.
Emile Cioran
Imagem: upload.wikimedia.org
Quando estamos a mil léguas da poesia, ainda dependemos dela por essa súbita necessidade de uivar – último grau do lirismo.
Emile Cioran
FANTASMAGORIAS GASTAS
I
O poeta não pede.
Implora.
O poeta não vibra.
Cala.
Estranho vício
de ser hóspede
do silêncio.
Azul e branco
faço do meu ofício
essa sede de luto
essa espiral do tempo.
Sei que o poeta implora.
Sei que o poeta cala.
Atravessando a ponte
vejo uma sombra do tempo
todo navio soçobra, um dia
eu penso.
Eco da solidão
e o poeta dorme
alucinado hóspede
do silêncio.
O poeta nada fala
apenas
FITA.
II
Fechado pra balanço.
Ando mais cinza que o cinza.
Meio nublado eu diria.
Meio aquela chuvinha
fina interminável
interminável tempo
eu não tenho sono
tenho frio somente
e amanhece.
Fechado dentro de mim
anoiteço lento
enquanto o sol se fortalece
numa audácia que me afronta.
Mais escuro que o cinza
alguma coisa negra
se impõe
escorre
dentro de mim
vermelho negro
uivo do infinito
eu tenho sono sim
mas me recuso
me recuso a acordar em mim
tomado pela luz que afronta
fisga súbita
fere fundo
CEGA.
III
O amor também pede trégua.
Anoitece.
Desidrata.
E quando alguma luz
quase acontece
de novo o ocaso
das coisas livres mas gastas
tão gastas
que até mesmo o tempo
nelas se refaz como se nunca
tivessem sido
outra coisa
que o derruído.
O amor também pede trégua.
Pede o afeto do amigo.
Mão alheia que seja.
Mas que seja
breve
insana
fogo que súbito se alastra.
IV
Eu sei
quando teu corpo
quer se afogar
no silêncio
menino.
Por isso
deixo você aí
maturando mudo
tua ausência
tua solidão
teu rompimento.
Eu vejo teu corpo
envolto em sombras
tua cabeça perdida
entre os meus dedos.
Eu sei
amigo
o amaro
o azul
e a transparência
da angústia.
VII
Poema ainda se fazendo
O pai, segundo ele disse
era afeito às focas
e não pensava em nada
que não fosse o mar.
O mar, no entanto
era luminosa rede
feita de tempo e espanto.
O pai, segundo se disse
afogava as mágoas na mardita
e não pousava tento
nessa esgarçada coisa
que é o tempo.
A não ser no mar
- feito do azul do vento -
não restará no pai, no filho
nenhum resquício
da luz do sentimento.
XI
O real deixa a gente exausto, cara.
Mas logo um sapo pula.
A pele do sapo é viagem pura.
E ainda tem sol
e vento
e folhas.
Enrola mais um.
Aperta até a ponta.
O real cansa a gente, cara.
Borboleta já lambi muita.
Mas o lance mesmo
é a pele do sapo.
Daí tu vira príncipe, cara
ou abóbora.
Mas o lance mesmo
é a pele do sapo.
Bendita língua.
Bendito líquido da esperança.
Bendita selvageria
essa que em mim
avança.
MÍNIMO TRATADO SOBRE O TEMPO
I
Tudo que morre
absorto em si mesmo
permanece.
Escama
Escaravelho
Tudo se deposita
fundo do mar
Tudo transita
transitório
e gasto.
E nós
- seres do tempo -
ainda presos a este espaço
ainda passageiros
ainda transeuntes
de tudo que vai e fica
de tudo que passa.
VI
Nasci anônimo
Observei tudo que voa
numa inveja antiga.
Partir
Desejo de estar
sempre em trânsito.
Desde cedo
criei asas imaginárias
e desde então
nunca mais pés na terra
nunca mais pousei
entre estranhos.
XVII
Sozinho comigo
as coisas
pulsam
sempre mais.
E se entrelaçam
sólidas
mesmo à música
mais distante.
Os carrosséis da infância.
Apito de sorveteiro.
O coaxar do sapo ao longe.
Sozinho comigo
as coisas
sempre pulsam
muito mais.
Mesmo no instante
em que finda
a música.
CINCO ESTUDOS
PARA O RETRATO
DE UM PÁSSARO
I
Não tenho asas
mas sei o tormento do pássaro.
Confabulo com a chuva
e há muito canto meu canto.
Sou mudo
raras vezes
canto.
O peso do silêncio
me abate quando
menos espero.
Das cinzas do meu sonho
renasço pássaro.
IV
Um canto
nunca se esquece.
Ecoa até a alma.
Floresce
feito flor implume.
Nunca fenece.
PRELÚDIOS MÍNIMOS
PARA MEU ESPÍRITO
Se nem no silêncio
somos cúmplices
de nós mesmos
o que nos restará?
DIA SEGUINTE
Ainda não é.
Mas terá sido
Sem que ao menos
se perceba.
FOTOGRAFIA
Sem rosto
Ficaria menos
propenso
às lágrimas.
DA MORTE
Aprender
Que cada dia
É um dia a menos.
Ou a mais.
RESUMO DA ÓPERA
Que o excesso
Seja o sumo
De tudo que vivi.
E a sentença.
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